domingo, novembro 26, 2006

E Robelix virou tira de Quadrinhos!



Quando eu nasci veio um anjo safado, um chato de um querubim,
que decretou que eu estava predestinado a ser errado assim
--

Chico Buarque de Holanda


E a máxima do "tem amigo safado quem pode" se prova verdadeira! Estava eu trabalhando, quando recebi um telefonema de Miguel, dublê de cartunista/vocalista de músicas incantáveis/impróprias da banda Capitão Gancho. Ele passou meia hora jogando conversa fora, reclamando da vida, enchendo minha bola, dizendo que eu era um cara que o entendia e eu só ouvindo. Já na hora de desligar ele me diz pra comprar o Jornal do Comércio do domingo, que ele tinha feito uma "singela" homenagem a mim. "Hum, isso me deixa inquieto", eu falei, já lembrando da última vez que ele tinha me homenageado de maneira singela quando tocávamos juntos. Ele deu uma gargalhada e disse que tinha ficado muito legal! "Agora eu estou seriamente preocupado!", disse eu, já nervoso, sabendo da habilidade do safado.

E o domingo finalmente chegou...como meus pais sempre compram jornal, eu tinha pedido a eles pra segurar uma cópia, caso eu me esquecesse de ir às bancas. Meio ingenuamente, conhecendo minha mãe e suas neuras de saúde comigo, até disse que tinha algo comigo lá, pra eles darem uma olhada...Tou eu trabalhando de novo e ligo pra casa dos velhos. Quem atende é minha sobrinha, que já vai perguntando "se eu realmente como feijoada no café da manhã"! "Hem, que estória é essa, menina?", ao que ela respondeu "é que sua mãe viu uma estória com você no jornal e ficou preocupada!" Miguel Falcão tinha atacado novamente!

Como se não bastasse comer "comida que faz merda" no café da manhã, eu ainda estava, de acordo com a charge, fumando 10 carteiras de cigarro por dia! Eu deixei na secretária eletrônica um recado desaforado pra ele, refrescando a memória do miserável que, das supostas 10 carteiras que eu fumava, 9 era ele quem me "presenteava"! Ele é fumante de ocasião e adora comprar cigarro pra experimentar. Um dia desses ele chegou pra mim com uma sacola cheia de carteiras de Hollywood, uma de cada cor, das quais, obviamente, nenhuma prestava. Ele fumou um de cada e me entupiu de cigarro que dava pra um mês! E eu nem quero falar das cigarrilhas "estoura peito" que ele insiste em trazer para os shows, jurando por Humphrey Bogart que elas se tragam! Da última vez que tentei, as lágrimas correram soltas, tamanha congestão! Também, nos ensaios da nossa banda, que supostamente deveriam ser pra tocar música, sempre vem Miguel com uma bacia de bacalhau com fava, que entornamos com cerveja e a pimenta preparada por ele mesmo? No fim de minha mensagem roguei uma praga pra que ele arranjasse umas hemorróidas com aquelas pimentas que ele come, pra nunca mais ele "difamar" a memória do quase monge vegetariano Robelix!

Ah, e a melhor de todas! Minha mãe perguntou se esse tal de Miguel não teria sido um "Anjo" na minha vida, trazendo um sinal pra eu me ajeitar!!! ha ha ha que ironia!!! Só se foi o querubim de Chico Buarque!

sexta-feira, novembro 24, 2006

Morango Jungle e o Canavial Blues

Em 1998, eu conheci Jô Pinto, atual baterista da El Mocambo, recém-chegado do Sul, e Alexandre Santiago, veterano da guitarra na cena do Recife. Juntos formamos a Morango Jungle, um nome psicodélico para um trio nem tão louco assim. A proposta era tocar Blues-Rock de qualidade e, com poucos ensaios, já estávamos batalhando nas noites do Recife. A banda tinha um som vigoroso e inclinado à improvisações, bem ao estilo do Cream ou a El Mocambo aqui na cidade.

Depois de algum tempo, conseguimos gravar um CD demo e enviamos a bolhachinha para um monte de gente na esperança de conseguir mais espaços. Gravamos o disco com a auxílio luxuoso do nosso amigo Junior Areia, excelente baixista, que hoje está com Fred 04 e que atuou como nosso técnico de som e fez a mixagem. Passamos apenas uma manhã no estúdio e colocamos lá 4 clássicos pra que as pessoas pudessem ter uma idéia do som da banda, inclusive com uma versão mais dançante de “I Shot The Sheriff”,de Bob Marley, mais “The Thrill is Gone”, “Hoochie Coochie Man” e “Crossroads”.

Uma noite, já meses depois da gravação, uma coisa inusitada aconteceu: Alexandre recebeu um telefonema de um cara com sotaque paulista que queria informações sobre o disco e saber como poderia conseguir algumas cópias. Alexandre achou engraçado o sotaque e perguntou se ele era de São Paulo. Ele respondeu que não apenas 'era', mas estava naquele momento falando de Sampa! O cara contou que tinha acabado de comprar a Guitar Player brasileira e essa tinha uma nota sobre “um trio promissor de Blues-Rock no nordeste”, assinada por Márcio Okayama, guitarrista e colunista da revista, que tinha uma fama terrível de arrasar com CDs Demo de que ele não gostava. Daí sempre brincarmos que ele tinha tomado umas na noite em que ele escreveu a nota e “se engraçou” com a gente! Mas o disco estava razoavelmente bem feito, se comparado às nossas parcas condições financeiras!

O bom dessa estória do disco é que ganhamos mais confiança e em pouco tempo estávamos recebendo Greg Wilson, o americano tornado carioca, guitarrista e vocalista da banda pioneira Blues Etílicos, para a primeira turnê dele pelo nordeste. Na verdade, era a primeira vez que ele saía do Rio pra tocar com outros músicos, num projeto solo, e ficamos aqui esperando com certa ansiedade. Mas quando finalmente o conhecemos, qualquer expectaviva de encontrar alguma estrela do Blues, cheia de manias e luxos, foi logo dissipada no único ensaio que fizemos. Ele já chegou com um pack de cerveja, o que nos agradou imensamente, e da maneira mais informal possível passamos só o início das músicas para, segundo ele, não perder o tesão de toca-las, e os finais a gente veria na hora, no show!

A mini turnê foi sensacional, com shows em João Pessoa, Recife e Maceió. O show em Recife foi casa cheia, no finado “Bola Gato”, aquele bar enorme que existia atrás do Arsenal da Marinha, e um inspirado Greg sacou até um trumpete para solar, coisa que nem sabíamos que ele tocava! Estávamos nos divertindo bastante, mas ninguém sabia que tínhamos começado a turnê com uma aventura bem inusitada. Antes de tocar aqui, tínhamos ido primeiro a Maceió. Enquanto seguíamos para a capital alagoana, estávamos ali na maior descontração, naquela de se conhecer, quando nos deparamos com um grupo de Sem-Terras fechando a BR bem na nossa cara! O povo já ía colocando os pneus velhos na estrada para aquela tradicional fogueira de fumaça negra! Ficamos ali sem ação e preocupados, não só com os horários, mas também por estarmos perto demais das manifestações. Quem quebrou o silêncio foi o motorista, quando disparou: “acho que tenho uma idéia!”...

Por onde entramos eu não sei. A única lembrança que tenho é do carro cortando por dentro de um monte de cana, buracos, montes e o diabo a quatro. Era uma cena louca, melhor “apreciada” por mim que estava na frente. Não havia coisa alguma que você pudesse chamar de “caminho”, rua, passagem, nada, só cana, buraco e lama pela frente. Eu não tenho a menor idéia como aquele cara estava se guiando. Nem com bússola eu acharia meu caminho ali! E de repente aconteceu o inevitável: atolamos...E “de cum força”, como dizemos aqui. Descemos para avaliar a situação, e as rodas traseiras estavam totalmente submersas naquela lama de barro. Tivemos que descer todos os instrumentos e bagagem pra aliviar a carga, e também calçar a roda com palhas de cana, ou coisa parecida. De todos ali o mais disposto era Greg, que pôs literalmente a mão na massa na operação! Depois de muita luta conseguimos desatolar, não sem antes um belo banho de lama quando o carro acelerou. A cena foi hilária, e nos uniu bastante pra os shows que estavam pra acontecer. Passamos o resto do fim de semana rindo da desgraça do outro, e nos comprometemos a fazer uma música sobre aquela saga, mas nunca cumprimos a promessa. A música seria apropriadamente chamada “Canavial Blues”, sobre a ironia fina, pra não dizer sarcasmo, dos deuses do Blues, que nos jogaram literalmente na lama de uma plantação (que só faltava ser de algodão!), pra termos uma pequena amostra do espírito do Blues, e que fortaleceu laços também, para a missão que tínhamos pela frente.

sábado, setembro 09, 2006

Do Uruguai a Madalena


Mercado da Madalena


No começo de 2001 tive uma segunda passagem rápida pela Uptown Band, antes do meu auto-exílio nos EUA por 4 anos. Naquela época a banda estava passando uma temporada no finado bar Uruguai nas ladeiras de Olinda. Era um taverna super charmosa, com uma lotação de, no máximo, meia centena de pessoas. Todos os meses Giovanni Papaléo estava trazendo vários convidados ilustres do blues brasileiro, quando geralmente eles vinham para tocar na Sexta no Uruguai, e Sábados no Downtown. Por coincidência vamos ter dois daqueles convidados dividindo o mesmo palco no "OI Blues By Night" este mês de Setembro aqui em Recife: Lancaster e Big Joe Manfra.

Naquela temporada, Lancaster foi o primeiro que conheci, ainda no final de 2000. Ele veio acompanhado de Flávio Naves no órgão, e fizemos shows apoteóticos nos dois bares, com destaque para a noite no Downtown, com casa lotada, onde ele foi pro meio das massas com sua guitarra Telecaster sem fio. Ele tocou em cima das mesas, do balcão e, a la Buddy Guy, provavelmente foi perturbar alguém nos banheiros também!

Mas a melhor recordação que tenho de Lancaster foi um papo no jantar, já depois do show no Uruguai, ainda na Sexta-Feira. Eu estava me preparando para viajar, e não tinha a menor idéia como os gringos iriam me receber, musicalmente falando. Ele me pegou em meio a essas preocupações, e disse com a maior calma do mundo que eu iria me dar bem, e que ele apostava em mim. A princípio eu fiquei meio incrédulo, achando que ele só estava fazendo média. No Sábado, quando nos despedimos, ele repetiu as mesmas palavras, e dessa vez eu resolvi carregá-las comigo na minha aventura. No final ele estava certo. Na primeira noite que toquei numa Jam ainda em Athens, Geórgia, o negão de quase 2 metros que cantava lá veio falar comigo no final: ele chegou sorrindo e me deu um abraço que quase me quebra uma costela. Ele disse que eu era bem vindo, e que eu voltasse sempre que quisesse... Fiquei devendo essa a Mr Lancaster...

Big Joe Manfra é outra figura rara. A guitarra fica pequena na mão dele, e que é uma mão peso-pesada. Mas maltratar mesmo só as pobres das guitarras dele. No convívio social ele é o cara pra você passar a noite rindo das estórias. Tocamos também na Sexta, e após o show ficamos ali de bobeira no balcão do bar, tomando umas, de leve. Lá pelas tantas ele sugere irmos a outro local qualquer, continuar o papo. Acabamos num bar também extinto agora, o Pretexto, que ficava ali na frente do Carrefour, ao lado do posto de gasolina. Mal tínhamos chegado, e aparece um maníaco sexual do Blues, meu amigo Wilson Neto. O cara quase cai pra trás com meu convidado! Ele imediatamente encostou o carro perto da gente, para ouvirmos horas de Blues a fio, tudo regado a muita cerveja, uísque, e uma tal de cachaça caseira, vermelha(!) que eles tinham.

Lá pelas tantas eu não sei quem teve a idéia brilhante, e eu digo que isso é coisa de bêbado. Dos bêbados eu tenho que eximir Big Joe, porque primeiro ele tava mais era criando um aquário no copo dele, embora sem nunca perder o espírito da noite, e segundo porque ele não conhecia a cidade para fazer uma sugestão daquelas. Mas a idéia é que cismamos que Big Joe tinha que comer um "Patinho no Feijão" no mercado da Madalena! Já estava quase na hora do mercado abrir, e saimos, aquela trupe incansável para o tal lugar. Chegando lá, o dono do "Bar dos Cornos" ficou olhando incrédulo aquela invasão bárbara, que insistia com ele se já saía um patinho no feijão e cerveja gelada às 7 da matina! Ele disse que sim, do dia anterior, ao que vibramos dizendo que aquele é que era o bom, que já tava apurado!

No final, lá pelas 10 da manhã, fui deixar Big Joe no hotel em Boa Viagem. Ficamos ali ainda rindo das estórias e fazendo piada do povo fazendo ginástica no calçadão! Ainda hoje, quando nos falamos, ele ainda se gaba de ter batido na cachaça, e carregado pra casa um tal de Bob Milk, que ele me apelidou, que diziam beber muito. Eu mereço!

quinta-feira, agosto 31, 2006

Puxando Uma Angústia

Nada como tomar uns choppes com um amigo e puxar uma angústia - Fernando Sabino


Este vai dedicado a Fernando Sabino, que me esclareceu o que eu já sabia, mas não tinha palavras para descrever. Como é bom "puxar uma angústia", não só com os bons amigos, mas fazendo carreira solo também.

Hoje fui pego de calças curtas, por causa de uma canção. Não era a primeira vez que eu a escutava mas eu sempre a interpretei de outra maneira, que também se aplica, mas nunca desconfiei das intenções originais de quem escreveu. Da primeira vez que a ouvi, eu estava longe de casa, provavelmente dirigindo numa daquelas highways americanas e logo fui atingido pela tristeza da música e pela voz da cantora. A primeira impressão que tive é de que ela falava do envelhecimento dela e de um relacionamento amoroso que parecia estar acabando depois de muitos anos. Os versos podiam até ser lugares-comuns, mas a vocalista colocava o peso da voz dela, rouca e grave, despojada, de uma maneira que me deixou até desconfortável. A música seguia com expressões tipo "o tempo faz de você mais corajoso, as crianças envelhecem, e eu estou envelhecendo também" ou então: "eu tenho tido medo de mudanças, porque eu construí minha vida ao redor de você" ou "será que eu consigo lidar com as estações da minha vida?"...

E o tempo passou, anos, até que, hoje, eu estava aqui em casa desavisado, pensando na morte da bezerra, na idade, 41, no passado, no futuro etc, realmente melancolando. Eu estava mexendo no computador, procurando por vídeos meio sem pretensão. Minha filha estava, aos meus pés, concentrada em abrir um saco enorme de bichos de pelúcia que ela tem. E aí eu esbarro no vídeo de Fleetwood Mac com a cantora Stevie Nicks se preparando para cantar "Landslide". Ah, eu pensei, é aquela música bonitinha que eu ouvia lá em Atlanta!

O violão começou a introdução e , neste meio tempo, minha filha conseguiu finalmente tirar do saco um urso enorme, o que ela prontamente me chamou atenção para o feito dela, dizendo "oh oh", rindo e apontando para o bicho peludo. Tanta coisa se passou na cabeça nesses milésimos de segundo, entre aquela aparição de minha filha brincando no chão e a aproximação da cantora do microfone!

Para quem foi pai tão tarde, aquela cena era realmente um achado na vida, uma bela surpresa das mais incríveis, mas que trazem para um melancólico de carterinha e anuidades pagas um monte de sensações misturadas de paternidade, de eternidade, mas de finitude também. É uma mistura de querer que aquele momento dure para sempre, mas já sabendo que tudo aquilo vai passar, embora eu saiba que aquele sorriso inocente vai ficar congelado dentro de mim pra sempre, enquanto houver eternidade em mim.

Stevie Nicks finalmente chegou ao microfone e murmurou algo que me gelou o sangue, porque eu tive a impressão que minha filha é quem tinha falado! "Esta é pra você, pai". E então meu mundo foi desabando como na música que ela cantava, sobre uma avalanche de neve por morro abaixo. A música que eu sempre interpretei como sendo sobre uma mulher falando para o marido, na verdade, pelo menos naquele momento, era sobre uma Filha falando para um Pai! E que momento foi esse que eu fui achar esse vídeo! Eu nem tentei segurar as lágrimas porque era perda de tempo...A pequena aos meus pés achou pouco e soltou os bichos e subiu no meu colo para ouvir a música comigo, sempre sorrindo e apontando para tela. Será que ela estava querendo dizer "faço dela as minhas palavras" ? Eu não sei... Em todo caso, vou colocar as letras no original aqui embaixo, com o respectivo vídeo, para que outros tirem suas conlusões, enquanto eu vou continuar puxando essa angústia, em busca de respostas que nunca virão, eu sei, mas vou tentar aproveitar essa busca com uma cerveja bem gelada, que eu estou necessitado!

Landslide - Fleetwood Mac
I took my love, I took it down
Climbed a mountain and I turned around
I saw my reflection in the snow covered hill still the landslide brought me down
Oh, mirror in the skyWhat is love
Can the child within my heart rise above
Can I sail thru the changing ocean tides
Can I handle the seasons of my life
Well, Ive been afraid of changing cause Ive built my life around you
But time makes you bolder
Children get older
Im getting older too
Oh, take my love, take it down
Climb a mountain and turn around
If you see my reflection in the snow covered hills
Well the landslide will bring it down
If you see my reflection in the snow covered hills
Well maybe the landslide will bring it down


segunda-feira, agosto 07, 2006

O Rei de Chicago

A cena não era muito diferente de um desses nossos terreiros, só que a música era um daqueles blues lentos, rasgados. A banda tocava baixinho, todos com os olhos pregados no negro com a guitarra a frente. Os músicos faziam o melhor que podiam para reforçar as estruturas da música, para manter a casa em pé, mas a missão era dificílima! O rei de Chicago começava uma subida lenta e nervosa, crescendo em intensidade pelo braço da guitarra, ao que ele disparou um olhar vidrado para o lado, como que avisando que o santo iria baixar...

Eu estava na casa de amigos, assistindo vídeos. Eu tinha vários discos de Buddy Guy, o herdeiro de Muddy Waters em Chicago, mas naquela época eu ainda não tinha visto aquele louco em ação. Já íamos bem altos de cerveja e coquetéis "molotov" de tequila, e um cinzeiro abarrotado de pontas de Malrboros, mas aquele negão, que portava uma Fender preta com bolinhas brancas, estava muito mais doido do que nós juntos!

Ele chegou ao fim do braço da guitarra e empacou num grupo de notas que começou a tocar com os olhos fechados e a tremer-se todo usando a mão direita para atacar as cordas freneticamente e nisso eu ia levando meu copo à boca mas a mão parou congelada no ar e a língua seca aguardando a cerveja e eu não conseguia tirar os olhos do homem entrando em transe tresloucado que aparentemente tinha deixado o corpo ali tocando mas que o espírito na certa já ia sendo carregado por alguma entidade que ele tinha provocado invocado quando ouvi um grito terrível vindo da minha direita Ahhhhhhh que quase carrega minha alma junto e um baque surdo com meu amigo de pernas pra o ar gritando "chamem uma ambulância !!!"

Alguns anos depois, já em Atlanta, num belo sábado à tarde, estou no metrô, trem lotado de gente bonita, muitos cantando, rindo, tomando umas, todos se dirigindo ao Piedmont Park para o Midtown Festival: 3 dias de música, 10 palcos, e uma centena de atrações, tudo por módicos $15 dólares por dia! Eu não sabia para quais shows aquela multidão estava indo. Eu só sabia que tinha que entrar no parque, e me dirigir ao primeiro palco à direita, ver o cara que tinha influenciado não só Eric Clapton e Stevie Ray Vaughan, mas principalmente Jimi Hendrix: Buddy Guy!

Consegui ficar perto do palco, mas um pouco na lateral, perto do quiosque da cerveja, que eu não tinha coragem de enfrentar aquela parada no seco. Ele entrou com a guitarra e a língua afiadas, e disparou uma meia dúzia de petardos, solou feito um insano, quebrou logo uma corda, que ele já faz de propósito, e era todo mundo gritando "é isso mesmo e bote pra f..." , e tome cerveja sendo emborcada como se fosse água, gente gritando "filho da p...", eu inclusive, em português, inglês e espanhol pra não deixar dúvidas, e a interação que ele faz com o público, é até heresia dizer, nem B.B King consegue! Ele manda a banda tocar baixinho, enquanto conversa com a audiência, faz perguntas, e ouve gritos lá de baixo, dá gargalhadas, saltinhos pra trás, mais gritaria, e mais impropérios, e ele conta, ou canta, estórias de traições sofridas, e o povo responde esculhambando a adúltera como se a conhecessem, ou completando as letras, ou ele mandava o público fazer silêncio com a mão direita, enquanto solava com esquerda, e por aí o show seguia, impecável.

Quando falei na língua afiada não foi só em referência ao cantar, mas ele também disparou contra rádios, gravadoras, produtores, e cabia mais gente, que não ouviam, não apoiavam as tradições negras do Blues, e que nem B.B King tinha espaço nas rádios, ou criticava a juventude negra que só queria saber de Hip-Hop, e não era à toa, com aquela maioria arrasadora de brancos na platéia...

No fim, como não poderia deixar de ser, ele saiu solando com a guitarra sem fio pelo meio da multidão enlouquecida, o que torna os shows dele tão inesquecíveis, com a chance de ver o mestre cara-à-cara! Vou também guardar pra sempre aquela imagem dele indo bater nas portas dos banheiros públicos! Ele conseguiu cortar pelo meio da multidão, e foi parar nos banheiros, que ficavam a uns bons cem metros do palco. Era hilário ver os caras, ou mulheres, abrirem a porta e se depararem com o negão solando na frente deles, o que era caso pra se mijarem de novo, dessa vez nas calças!

Sim, naquela noite fatídica do vídeo, pulamos todos em socorro do amigo, que estava por trás de uma poltrona, como diz o povo, "estatelado" no chão, a mão suspensa no ar, com o copo de tequila cheio, coisa de profissional, sem derramar uma gota! O palhaço tinha tentando simular uma queda por causa do solo de Buddy, mas o "nível de sangue no álcool" acabou derrubando-o de fato, e ficamos ali todos no chão sem conseguir parar de rir!

sábado, julho 29, 2006

O Rei da Telecaster

Blues é aquele tipo de música tocada com longos dedos negros, e cheios de anéis...


As mãos deles pareciam ter o mesmo tratamento, o mesmo histórico. Fica até parecendo um estereótipo. Elas começavam desde cedo a serem curtidas nas plantações e no sol. Muitas construiam estradas de asfalto e de ferro. Posteriormente, elas enrijeciam nas fábricas de aço, ou de carros. Eram mãos fortes, negras, de pele grossa e calejadas, acostumadas que eram ao catar do algodão, e ao levantamento de sacas. Ainda na adolescência, já então nas fábricas e usinas, muitos meninos começavam a manejar ferramentas pesadas, passando anos batendo no ferro incandescente. Mas, nos pequenos intervalos daquela vida duríssima, eles tentavam, desengonçadamente, tocar um instrumento musical...
Nisto o relato daqueles negros americanos também é muito parecido: eles ficavam horas sentados ao pé do rádio, ouvindo as estações dos segregados americanos, de onde captavam nas ondas todo tipo de manifestação musical negra: "Spirituals", que eram os hinos mais lentos, ou "Gospel", também religioso, mas que envolvia mais ritmo, ou a "música pagã", chamada "Blues", oriunda das "casas de baixa reputação", dos bares, das plantações, ou das ruas. Os garotos ficavam ali, tentando adestrar os dedos duros, provavelmente de unhas grandes e com terra, nos violões velhos de algum parente. E, de repente, como num milagre, aqueles meninos negros começavam a tirar uma música fortíssima, e bela, de dentro dos violões, ou das pianolas velhas, ou das gaitinhas desafinadas...
Esse texto de hoje foi inspirado nas mãos de um guitarrista de Blues, chamado Albert Collins, o rei da guitarra Fender Telecaster.
Enquanto o vídeo tocava, meus olhos estavam fixos nas mãos dele. Eu não sei o que me levou a ficar tão concentrado nas mãos. Geralmente quando um contrabaixo, que é meu instrumento, aparece em cena, meu olhar vai direto para as mãos do baixista, para observar a técnica, mas ali estava um cara tocando guitarra... Mas afinal acho que foi a técnica mesmo, ou a ausência dela, que me chamou a atenção. Os dedos eram desproporcionais ao instrumento que ele manuseava: muito fortes e longos, e carregados de anéis. Na mão direita, que ele usava para, literalmente, atacar as notas, não havia uma palheta. O que havia era um dedo indicador dando patadas nas pobres cordas de aço.
Eu então comecei uma viagem ao passado, tentando rastrear o histórico daquelas mãos, e do homem que as usava para tocar aquela guitarra Telecaster como ninguém. Ali no vídeo estava um músico maduro e no auge da carreira que, infelizmente, estava para ser encerrada, com um câncer no fígado, em 1993, aos 61 anos. Mas voltei correndo no tempo, antes que ele parasse de tocar, e partisse. A viagem tinha que ser rápida, e só deu tempo de ver poucas imagens, um pouco amareladas do tempo:
Numa imagem os pais estão saindo com ele da maternidade em Houston, Texas, em 1933, e se dirigindo à fazenda onde eles trabalhavam.
Eu vi o menino Albert aos 11 anos, tentando aprender as músicas de Lightnin' Hopkins, seu primo distante, no rádio, como também as canções de John Lee Hooker, o rei do boogie-woogie.
Num instante e ele já está abandonando a escola no meio do ginásio, para poder trabalhar.
Eu vi Albert nos anos 50/60, vibrando nas noites da América, já com sua banda, tocando nos guetos, e gravando seus primeiros discos, que fizeram um sucesso modesto nas rádios negras.
Mas não! Ahh, essa não! Meus olhos encheram d'água, ao vê-lo parar completamente de tocar guitarra, aos 40 anos, minha idade, no ostracismo dos anos 70. Ele está saindo de casa agora, numa manhã fria, dirigindo-se ao seu emprego braçal na construção civil. Cacete, como eu queria ser Deus agora, e evitar essa cena a qualquer custo! Foi impossível não pensar em Cartola, nosso gênio brasileiro, guardando carros numa rua qualquer, isso depois de ter feito sucesso...Essa foi a imagem em que mais me demorei, e quase não volto a tempo de vê-lo tocar a última estrofe...
Espera aí, que ano é esse? 1985, e que alívio! O cara voltou a gravar, convencido pela espôsa, e por Neil Diamond, o rock-pop star, que anos antes teve que assistir, incrédulo, Albert chegar com os outros trabalhadores, para reformarem a sua mansão em Hollywood...Mas agora ele está recebendo um Grammy e, aos 53 anos, tem finalmente o trabalho reconhecido.
Mas o destino não iria deixá-lo levar uma vida boa por muito tempo: 1993, e essa é a última imagem dele que eu tenho, antes de voltar e vê-lo tocar o último acorde. Ele está no médico, quando recebe a notícia fulminante de que está com câncer, em estado avançado. O médico lhe dá mais 4 mêses de vida, e pronto. Não, eu não consigo ver o que Albert Collins está sentindo, ou pensando. Ele certamente era experiente, e bem versado nas viradas dessa vida. Sim, acredito que ele encarou de frente, forte como ele era, e só sei que ele saiu daquele consultório e foi viver mais 6 mêses, em cima de um palco, com as mãos cheias de anéis, tocando uma guitarra Telecaster velha como nenhum outro jamais tinha tocado!
A lição que ele deixa como instrumentista não pode ser esquecida, a lição que eu aprendi observando as mãos dele, e a música de outros grandes. Além de saber aplicar a experiência de vida nas notas que ele toca, ele também habita aquele limbo que só os grandes mestres têm acesso. Nesse espaço que ele flui não existe técnica, ou pelo menos aquilo que nós chamamos de técnica. Ele habita um mundo às vêzes atemporal, atonal, cru, e que nós, com muitas vêzes treinamento erudito, queremos "consertar", dar uma "melhorada", uma "ajustada" e, meu Deus, que ingenuidade, ou ignorância, não existe nada lá a ser mudado! A música que sai dos dedos dele é Blues com letra maíscula, em cada nota, cada grunhido ou riso, e é inimitável!
Notas do Clip: E quem disse que Blues tem que ser triste? Há uma vasta gama de estilos, e de posturas dentro daquilo que chamamos de Blues. Na maioria das vêzes, a postura é de desafio em face das dificuldades, e nunca um entregar-se à dor. O humor sempre esteve presente no Blues, e tem sido uma arma super eficiente contra as mazelas desta vida. Os caras, e mulheres também, simplesmente não se rendem a ficar choramingando por causa das dificuldades, mas conseguem dar um boa gargalhada da própria desgraça! No caso desse clip hoje o assunto é a bebida, que é um tema conduzido com maestria por Albert Collins. A música conta a estória do povo recriminando, dizendo "você está alto e vive bêbado o tempo todo!" ("but you're so high, stay drunk all the time"), ao que ele responde "mas eu não estou bêbado. Eu estou apenas bebendo!" ("I ain't drunk I'm just drinking") O final é gozadíssimo, quando ele começa a contar quantas cervejas ele realmente tomou: 30! Mas ele enrola a língua e não dá o braço a torcer: "I ain't drunk, I'm just drinking!" . Tin-tin, Mr Collins!!!


segunda-feira, julho 24, 2006

Johnny, o Albino do Texas

But he could play guitar like ringing a bell...
(Em "Johnny B. Good" - Música clássica do século XX)

A platéia estava toda de pé, da última fila ao gargarejo, batendo palmas e pedindo bis. Os seguranças tentavam em vão fazer-nos retornar às cadeiras, mas nem dávamos atenção a eles. De repente as luzes apagaram-se, e o velho mago retornou por detrás das cortinas, dessa vez com sua guitarra "V shape", e o slide no dedo. Ele sentou-se quase ao alcance das nossas mãos, e agradeceu com o mesmo sorriso tímido do menino de 13 anos, que dizia a todos que um dia tocaria com Muddy Waters. Ele contou até quatro, e a última coisa que me lembro foi que o mundo desabou, não por causa das forças da natureza, mas desconstruido no contato do aço das cordas com o gargalo de um tubo de whiskey...

Atlanta, numa tarde de outono, em meados de 2004. Vinha do dentista, por um caminho que nunca usava por causa do trânsito terrível. De repente dei uma olhada à minha esquerda, e meus olhos pairaram sobre os letreiros do teatrinho, anunciando Johnny Winter, o guitarrista albino do Texas, em uma semana...

O show foi numa noite de quarta-feira e, já no bar do teatro, conheci uma daquelas figuras que sempre encontramos nesses tipos de eventos: ele era um "senhor", com um certo ar de louco, de seus 60 anos de idade, de botas, calças jeans e jaqueta dos "Hell's Angels". Ele logo engrenou um papo com a gente sobre os bons tempos dos anos 60 e 70, quando assistiu a alguns "showzinhos" básicos, tipo Led Zeppelin e Cream, até Stevie Ray Vaughan nos 80! Eu já estava acostumado àquele tipo de relato, e já nem ficava mais descrente, tamanho o número de pessoas que eu tinha conhecido, e que contavam as mesmas estórias de Rock e Blues, e shows alucinantes. Ele nos contava que tinha se aposentado da indústria automotiva, e agora só tocava guitarra nas jams da cidade... Um plano de aposentadoria nada mal pra quem já tinha visto tanto!

Fui ao show com um casal amigo, e nos sentamos na terceira fila. Ficamos ali nos revezando na busca das cervejas, e assistindo ao show de abertura. Eu tentava "doutrinar" meus amigos contando estórias de Johnny, de como ele tinha colocado o nome nas enciclopédias de Blues e Rock, desde Woodstock até produzir e tocar com Muddy Waters, o rei de Chicago, que o chamava de filho. Em 40 anos de carreira, ele continuava fiel às raízes, sem nunca se vender aos modismos.

Enfim a banda entrou e começou a botar a casa abaixo. No meio da música ele surgiu, aquela figura fantasmagórica, tatoos por todo o corpo, cabelos longos e branquíssimos, um chapéu enorme, e empunhando sua amiga guitarra "Firebird". Para minha surpresa, ele precisava de um guia para chegar até o microfone, e pensei em voz alta: "Uau, o cara já entrou carregado!", ao que meu amigo disparou com um olhar de reprovação: "pelo amor de Deus, Roberto, o cara é cego!". Caramba, aquela foi terrível, mas eu não sabia que ele era "legalmente cego", como dizem, de tão pouco que enxergava!

Mas que diferença fazia, se ele era cego, ou não, se os dedos voavam a todo lugar que ele mandava? Ele manteve a platéia hipnotizada durante todo o show, especialmente nos blues mais lentos, onde ele ia buscar grunhidos que Deus ou o diabo sabiam onde, e solos apocalípticos. O velho Merlin, apesar de certa fragilidade, continuava senhor absoluto da guitarra, e cada vez mais eu ia afundando na cadeira, de cabelo em pé, amaldiçoando a idéia de ter sentado, em vez de ter ficado perto do bar...

Durante o show, numa daquelas esquisitices nos EUA, a platéia foi super comportada, e todos ficaram confortavelmente sentados. Quando tudo parecia terminado, já demorando muito pra um bis, alguém teve uma idéia brilhante: um louco, de botas, calças jeans e jaqueta dos "Hell's Angels" disparou em direção ao gargarejo, batendo palmas e gritando de uma maneira ensandecida! Meus amigos me olharam com aquele ar de perplexidade, como quem esperando por explicações, ou seriam instruções... Ao que eu nem pestanejei: "sigam aquele doido!". Num segundo estávamos saltando das cadeiras atrás do cara! Podiam até acusar os brasileiros de terem bagunçado, mas não fomos nós que começamos!

Após o show ainda fomos a um boteco lá perto, comemorar a noite, felizes por termos visto de perto o albino Johnny Winter, que entrou para a história porque, pelo menos para ele, tocar guitarra era algo tão fácil quanto tocar um sino!

Notas do Clip: Eu sempre gosto de deixar o pessoal bonito na fita aqui. Atualmente, Johnny Winter está com uns bons 60 e tantos anos. Ele está praticamente cego e a vida que ele levou ao pé da letra, de sexo, rock'n roll e drogas, fez estrago no mago da guitarra, apesar de ele ainda soar excelente. Mas no clip ele está ainda novinho, mais ou menos na época em que ele gravou "The Progressive Blues Experiment", uma jóia do Blues/Rock, por volta de 1969. A banda é composta do baterista Uncle John Turner, que por sinal está "travadíssimo", certamente devido ao uso de substâncias abusivas, bem normal na época; Edgar Winter, o mano albino no piano e, por último, o baixista Tommy Shanon, novinho de ainda usar fraldas, que viria a ficar famoso acompanhando Stevie Ray Vaughan na banda lendária "Double Trouble". A música "Johnny B. Goode" foi escrita por outro monstro do Rock, Chuck Berry, um dos pais do Rock'n Roll, mas que se aplica perfeitamente ao albino que veio do Texas!

segunda-feira, julho 17, 2006

Aquela Menina do Texas

Eu estava ouvindo música, deitado no sofá lá de casa. Talvez estivesse sonhando com uma cantora de Country Blues do Texas. No sonho ela cantava só para mim. Ela também gemia e gritava do fundo da alma, e meu coração ia batendo junto com o dela. De repente acordo com a porta abrindo-se, e minha mãe entra como uma avalanche em direção ao toca-discos. Eu mal conseguia entender o que ela pronunciava, já após ela ter desligado o som, perguntando se eu estava louco. Ela falava algo como "dava pra ouvir da outra rua", e do "respeito aos vizinhos que eram idosos". Finalmente ela disparou contra a cantora do disco, perguntando "o que é que aquela louca tinha, que parecia estar morrendo!".
Era uma vez uma menina feia que morava em Port Arthur, no Texas. Ela se chamava Janis Lyn Joplin. As biografias dizem que ela era uma menina tímida e muito inteligente. Ela era leitora voraz, e também pintava muito bem. Mas o que ela mais gostava era de cantar. Logo cedo começou a frequentar os bares da cidade, onde cantava por qualquer trocado, ou pela bebida. Nos tempos de universidade, saiu da pequena cidade natal e foi para Austin, uma cidade grande, e a vida começou a mudar radicalmente. Ela começou a se afastar da vida pacata de cidade pequena, e começou a experimentar com drogas pesadas, especialmente heroína.
Ela ainda tentou voltar para casa, e talvez seguir aquele caminho "normal" de casar-se e ter filhos, mas a coisa não funcionou. Nesse meio tempo apareceu uma oportunidade de fazer um teste em San Francisco, para uma banda local. A menina doce e sensível foi logo cair no meio da confusão e agito dos anos 60: lutas pelos direitos dos negros, Vietnan, guerra fria, os beatniks, hippies, tudo somado a muito LSD e Heroína. Ela foi por ali trilhando o caminho dela, até ao dia em que conseguiu uma chance de cantar no Monterrey Pop Festival de 1967...De repente o mundo acordou e viu uma menina de cabelos longos, que nem era tão feia assim, abrir as portas de céu e inferno com uma voz que chocou a todos! Daquele verão de 1967 até o dia 4 de Outubro de 1970, foram três anos fulminantes, onde ela alcançou o estrelato, foi aclamada pelo mundo, e morreu num quarto de hotel, aos 27 anos, numa overdose de heroína.
Eu nem queria escrever essas notas biográficas, que eu não começei com essa intenção. Mas tenho andado com a idéia de inserir algo tipo "momento cultural" no meio dos textos, caso encontre um leitor desavisado, ou leigo no assunto. O motivo de começar a escrever hoje era o de encontrar uma resposta. Na verdade, nunca acredito que vou achar resposta alguma, apenas por escrever, mas acabo escrevendo, naquela de "crer contra a esperança". A idéia era responder à minha mãe, uns bons vinte anos depois, algo que nem tentei na época: "o que é que aquela louca tinha, que parecia estar morrendo".
Já se foram muitas audições, leituras, e bebedeiras, tentando encontrar nas entrelinhas daquela nota biográfica acima, onde é que aquela menina doce do Texas foi buscar aquela dor. Eu sei que ela teve umas experiências ruins na escola, onde ela chegou a ser chamada "o MENINO mais feio do colégio", mas será que isso foi um estopim tão grande assim? Alguém poderia citar as drogas, mas quem a viu tocando nos botecos antes do estrelato, e das drogas, diz que ela nunca mais cantou tão bem...Também não acredito que drogas "criem" algo novo que não está dentro de você. Elas podem até maximizar, ou destruir de vez, o talento, mas não tiram de dentro o que você não tem.
Espera aí que tá chegando uma idéia! Será que ela não era algum tipo de receptor ultra-sensível da época dela? Além dos problemas da guerra, havia aquela questão que tava "pegando", que era a luta dos negros, que ainda eram segregados. Não teria a menina branca do Texas tomado as dores, ao ponto de se tornar um deles? Ela não só cantava música negra, mas sempre foi envolvida na luta pelo fim do racismo, e o negócio na época era sério e violento, Martin Luther King que o diga. Se ela queria ser sincera ao cantar Blues, ela talvez achasse que tinha que ser um deles, o máximo que ela pudesse, ao menos no sentimento. Nunca uma branca conseguiu cantar Blues do jeito que ela cantou, com tanta dor e força. Já é um chavão dizer mas ela foi a cantora branca mais negra de todos os tempos. Às vêzes foi até mais negra do que as negras, quando gravou "Summertime", um clássico da música americana que, embora tivesse sido composta por um branco, contava a estória de uma ama negra que ninava um bebê branco. Muitas já tinham gravado mas, depois de Janis, poucas têm se aventurado a tentar de novo.
Janis também incorporou os sofrimentos de ser mulher, tudo com um conhecimento de causa absurdo para alguém tão jovem. Ela parecia uma anciã quando chegava perto de um microfone. Ela também tinha seus momentos alegres, e sabia passar isso ao público. A risadinha marota que ela dá no fim da faixa "Mercedes Benz", uma das últimas da vida dela, ainda é uma das coisas mais gostosas já gravadas.
Eu confesso que, hoje em dia, tenho ouvido pouco Janis, porque ela toda vez me acerta uma veia lá dentro que acaba me levando a beber mais do que eu devo. Eu lembro um dia em que liquidei umas dez cervejas grandes, que não eram brincadeira, tipo "bock", enquanto assistia a um vídeo dela, e no fim fiquei ali numa cadeira de balanço, chorando feito menino...
Resisti à tentação de mostrá-la hoje cantando "Summertime", ou "Ball and Chain", que estarreceu o mundo em Monterrey. Você podem ir no youtube.com e assistir lá. Queria deixá-la no auge, cantando "Maybe", uma das minhas favoritas. Também no vídeo, um baixista que gosto muito, Brad Campbell, que tomou um "chá de sumiço" após a morte dela, mas que sempre tenho como referencial ao tocar Blues ou Rock. Sing the Blues sweet girl!
Um dia minha mãe leu um artigo sobre Janis numa revista. Ela lembrou que eu tinha uns discos dela na estante...Só por curiosidade, ela foi até lá dar uma olhada...Nesse momento eu estava descendo de um ônibus lá perto. Quando eu vinha me aproximando de casa, ouvi uma voz familiar cantando nas alturas de meu toca-discos...Ao entrar em casa me deparo com minha mãe, deitada no mesmo sofá que eu gostava de ouvir música...Ela me olhou ainda com algumas lágrimas nos olhos, e... me pediu perdão...

sábado, julho 15, 2006

"The Bass Champion"

Num blog de baixista é necessário eu começar a fazer meus tributos. Eu sempre falo que tocar contrabaixo é coisa pra macho, e meu amigos riem. E se o baixista for um boxeador, ex-campeão de pesos pesados do estado de Ilinois, no norte dos EUA? Aí é que a minha teoria é reforçada! O contrabaixo é um instrumento de poucos amigos, e os poucos que conseguem manter uma amizade com ele, geralmente começam na adolescência. Ninguém pode dizer que toca contrabaixo desde criancinha, porque é simplesmente impossivel uma criança ter mãos, e altura, para envergar aquele gigante, carinhosamente chamado de "dog house", pra mim, a casinha do cachorro.

Mas em Willie Dixon, um dos meus ídolos e referência, o contrabaixo encontrou um "parceiro de peso". Nas mãos daquele gigante vindo do Mississipi, o contrabaixo até parecia um violoncelo! Dixon achou na música uma maneira de sair das ruas, e do encalço da polícia, com quem sempre teve problemas. Durante a segunda guerra também fugiu do alistamento, e acabou ganhando um "tempo de reflexão" de dez mêses na cadeia.

Ainda quando adolescente, decidiu fazer o que muitos sulistas negros faziam na época: imigrar para Chicago, em busca de uma nova vida. O estado tinha uma industria fortíssima, especialmete automotiva, e era o destino de muitos que viriam a re-escrever a história do Blues moderno, como o próprio Dixon e Muddy Waters, o rei de Chicago. Mas ao chegar lá, resolveu usar seu tamanho, e vivência das ruas, para se tornar boxeador. Chegou a ser o campeão estadual profissional, e aí dá para entender algumas de suas letras de música, como em "I'm Ready", em que ele descreve o cara que está no bar, doido pra que alguém começe alguma confusão, e ele possa entrar "rachando"! O cara era para ser levado a sério quando cantava algum verso do tipo "don't mess with me", talvez livremente traduzido para "não mexa comigo que você apanha"!

Mas para infelicidade dos ringues, e alegria da música, o campeão aposentou-se cedo, e começou uma das carreiras mais fulgurantes da história do Blues, lançando as bases, ou melhor, gestando o filho do Blues, o Rock'n Roll. O elo de transição do Blues com o Rock pode ser percebido nas participações dele nos discos de Chuck Berry, nada mais nada menos do que o pai do Rock. Ele foi talvez o compositor de Blues mais gravado pelas bandas emergentes de Rock da época, especialmente as inglêsas, como Roling Stones ("I Just Want To Make Love To You"), Cream("Spoonful") e Zeppelin ("I Can't Quit You Baby", "Bring it on home"). Ele nunca contentou-se em apenas tocar, mas foi também cantor dos bons, compositor prolífico, e manda-chuva da Chess Records, o celeiro do blues em Chicago. E o cara escreveu com Muddy Waters "Hoochie Coochie Man", que é o "cavalo de batalha" de qualquer Blues jam no mundo!
Infelizmente, os vídeos de Willie Dixon foram retirados do youtube! Quem viu terá que contar para os netos o dia em que eles "toparam" com o negão tocando por aqui. Se o "homem" reaparecer por lá, colocarei de novo no blog! Mas, para não dar o braço a torcer a essas vicitudes da internet, fica aqui um clip com Muddy Waters, o verdadeiro Rei do Blues, junto com Sonny Boy Williamnson na gaita, e o boxeador-baixista Dixon ao fundo! Destaque para a "moral" dos caras, especialmente o penteado de Muddy, tocando aquilo que eles tinham domínio absoluto!

sexta-feira, julho 14, 2006

O Blues Brother Original


Venham por aqui, disse o trombonista, e os dois brazucas bêbados o seguiram. Ao passarem pelos seguranças indigestos, os dois ainda deram tchau pra os caras. Eles subiram a passos trôpegos a escadaria que dava para os camarins e, lá no topo, encontraram um corredor que passava por trás de toda a extensão do palco lá em baixo. No fim do corredor havia uma porta aberta, de onde dava para ver um pequeno sofá. Naquele sofá, conversando animadamente, estava um senhor negro, baixinho, com um chapéu branco, camisa xadrez e calças vermelhas. De repente ele pára a conversa e olha para o lado, em direção ao corredor. Ele abre um sorriso enorme e, acenando, grita "Venham cá meus filhos!"...

New Orleans, Junho de 1996. Passamos o dia batendo pernas e "inspecionando" os bares da cidade. Estávamos particularmente ansiosos naquele dia. Era um dia cheio de eventos para quem gostava de Blues. Iríamos à tarde passear de barco no Mississipi, e teríamos que descer correndo do barco a vapor "Natchez", e ir ao "House of The Blues", ver uma lenda tocar, Junior Wells, o gaitista e eterno companheiro de Buddy Guy. Juntos eles tinham gravado dezenas de discos, dos quais eu tinha uns 5. Confesso que estava um pouco nervoso naquele dia.

Conseguimos chegar em boa hora, e nos instalamos em pé, com os cotovelos no palco. Combinamos a estratégia de só sair um de cada vez pra comprar cerveja, para não perder o lugar. O astral do bar estava ótimo, casa cheia, gente bonita, e nós ali na expectativa. Finalmente o baixinho Wells entrou em cena e a casa tremeu! Pra quem esperava um show com muito "slow blues" ou "shuffles" se enganou. O cara baixou um espírito de James Brown e disparou uma saraivada de funks irresistíveis. A banda era super competente, com destaque para o naipe de metais. Ficamos ali em transe, sem saber se chorávamos ou ríamos. Provavelmente fizemos uma combinação dos dois. Eu estava tão louco que queria alguma recordação daquele show, nem que fosse ao menos tocar no pé dele! Eu até que tentei mas, pra minha vergonha, o baixinho tomou um susto e pulou pra trás com medo! Eu não tinha onde enterrar a cabeça! No fim ele saiu com um microfone sem fio pelo meio da multidão, e eu consegui tocar no ombro dele, apesar dos empurrões dos guarda-costas... Eu mal sabia o que estava pra acontecer...

Após o show ficamos por ali bebendo, tentando digerir os eventos, quando avistamos o pessoal da banda tomando umas também. O doido do meu amigo inventou de ir lá, pra tentar uns autógrafos. Saí arrastado por ele, e nos aproximamos dos caras. Em pouco tempo estávamos numa conversa animada, e de repente um dos caras disse "espera aí, vocês são do Brasil?" "yes, man" respondemos com nosso inglês cambaleante. "Mas vamos tocar no Brasil no mês que vem!", disse ele, e nos pegou pelos braços e saiu nos arrastando em direção aos camarins!

De repente estávamos ali, cara a cara com o Homem. Eu sentado no sofá ao lado dele, e meu amigo de cócoras, praticamente ajoelhado, tentando juntar os pedaços do nosso inglês e manter uma conversação. Ficamos até um pouco surprêsos, mas não muito, ao ver o quanto ele entendia de música brasileira. Falou de Jobim a Milton Nascimento com um conhecimento de causa incrível. Também falou da amizade com Buddy Guy, e até citou alguns shows feitos no Brasil, que inclusive eu tinha um disco desses shows. Ele ficou um pouco impressionado, e feliz, de ter gente da idade da gente, de outro país, ouvindo a música dele. Sabemos que lá na América a juventude negra já não dá importância ao Blues. A maioria parece ser de brancos agora, dos que estão carregando a tocha desse ritmo originariamente negro.No fim, já pra não encher o saco dele, nos despedimos, com direito a fotos, que graças a Deus eu carreguei a máquina escondida para o show.

Partimos pelas ruas escuras e desertas de New Orleans, com medo de um assalto, com um rolo de filme escondido nas cuecas, e muita estória pra contar pros netos!
A seguir, uma novidade no bloguinho que me deixou muito feliz! Seguindo a tradição de "matar o pau e mostrar a cobra", temos agora vídeos! Espero que funcione com conexões lentas. Provavelmente é preciso ter certos "plug-ins" como Flash e Shockwave, mas não tenho certeza. Se não funcionar me deixem uma mensagem! Nos testes aqui o negócio funcionou uma maravilha. No vídeo, Junior Wells, cantando seu clássico "messin' with the kids", com Mike Bloomfield na guitarra! Se não me engano, o outro cara que canta, por sinal muito bem, o gordinho branquelo, é Nick Gravenites, que escrevia músicas com Janis Joplin! Enjoy!

sábado, julho 08, 2006

Os Dez Mandamentos Segundo B.B King

Eu vi, meus irmãos, a face de Deus, e ele era negro, sentado no seu trono, cercado de anjos e arcanjos, todos a tocar instrumentos musicais, numa tarde quente e úmida de Atlanta.



Era um sábado de agosto, no verão de 2002. Eu estava com o irmão baixista, Marcílio, que estava passando uns dias conosco, recém-convertido ao Blues, através dos cultos realizados no finado La Prensa, que ele provavelmente um dia relatará a mesma visão, mas talvez com palavras diferentes. Para mim, como aconteceu foi assim:
Recebi o chamado do Senhor pela manhã, através de uma voz interior, com ordens de ir ao Chastain Park, no norte da cidade, tentar comprar ingressos para um show de Blues que iria acontecer à noite, ao ar livre, e em noite de lua. Chegamos lá e a bilheteria estava fechada. Encontramos um peregrino da Inglaterra, que tinha acabado de chegar na cidade, e tinha recebido o mesmo chamado, através de um jornal. Tentamos de todas as formas contactar telefones pra comprar os ingressos, sem sucesso. Fomos para casa cansados e confusos. Como conseguiríamos ver o show sem os ingressos? A mesma voz me falou novamente, e disse que eu confiasse, e que voltasse às 5 da tarde, quando as portas se abririam.
À tarde retornamos, eu e o irmão Marcílio, e descobrimos que os ingressos mais baratos que, por "coincidência", eram os que podíamos pagar, estavam esgotados. Ficamos abatidos, mas desta vez não desanimamos. Começamos a andar pelas ruas vizinhas e, orando, pedimos orientação, ou que um anjo nos fosse enviado, para nos dar suporte. Talvez ele pudesse nos materializar, discretamente, num cantinho lá dentro, quem sabe! Após alguns minutos, avistamos um negro alto, que caminhava falando no celular, e ele tinha um pequeno cartaz na mão, que parecia dizer "I Need Tickets". Começamos a segui-lo com esperanças renovadas. Depois de algum tempo conseguimos alcançá-lo e, um pouco nervosos, perguntamos se ele tinha entradas. Ele primeiro olhou para os lados, nos estudou dos pés à cabeça e só depois é que disse que, até então, nada...
Continuamos com fé pela rua deserta, e começamos a ter a certeza firme de que assistiríamos ao show. Se conseguimos encontrar um cambista de bobeira assim, pensamos, numa rua deserta nos Estados Unidos, era porque alguma coisa estava mesmo para acontecer. Avistamos um outro homem a uns cem metros, parado na beira da estrada, e corremos para ele . Chegamos lá e ele disse que só tinha um, e de $60, que era o mais caro. Neste momento o outro homem veio correndo para nos dizer que tinha acabado de conseguir dois, e dos mais baratos, e que nos venderia pelo mesmo preço da bilheteria! O milagre que tanto esperávamos! Mas irmãos, eu faltei com a fé, e dando uma de Tomé, que pediu a Cristo para mostrar a chagas, demonstrei desconfiança, achando que iríamos ser roubados, e perguntei se o ingresso era "quente" mesmo, ao que ele deu uma gargalhada enorme, onde mostrava as iniciais dele, acho, encrustadas em ouro nos dentes frontais! Disse que só comprava mais barato, e assim vendia pelo preço normal, satisfazendo assim aos clientes! Que sonho de cambista! Não tivemos dúvidas de que ele era o anjo que tínhamos pedido.
Finalmente entramos na área do show e encontramos lá o peregrino inglês, que tinha conseguido ingressos de outra forma, talvez com outro cambista, quer dizer, anjo. Nos congratulamos, e começamos a nos preparar espiritualmente, bebendo um suposto néctar sagrado australiano, de nome Foster, em latas de 600ml, e que Deus mantenha ardendo no fogo do hades quem inventou coisa tão ruim, mas afinal nos instalamos. Percebemos, como marinheiros de primeira viagem, que os outros fiéis vieram muito mais preparados: o parque permitia que comes e bebes fossem trazidos, e todos carregavam verdadeiros toneis de cerveja e lanches. Nessa área mais barata, sentávamos na grama, enquanto na outra parte havia cadeiras e mesas, onde todos trouxeram não só champanhe e vinho, mas também velas, para quando a noite chegasse.
Tivemos ainda que aguentar dois shows de abertura, de uns caras que de vez em quanto tentavam tocar blues. Foi quando começei a doutrinar o recém convertido irmão Marcílio, a respeito das sacanagens do Blues, e como o problema em si, tecnicamente falando, não era executar a música, mas como criar uma atmosfera propícia, baseado naquilo que você é, e sente, e como trazer a platéia pra participar também, seja para rir ou chorar.
Após umas duas horas, finalmente, A Banda entrou no palco, ainda sem o Homem, mas mostrando para que veio. Já estava começando a anoitecer, e a lua, enorme, começava a ensaiar a entrada também. O séquito sagrado e real era composto de 4 metais, que eram sax, tenor e alto, mais trumpete e trombone, como também um contrabaixo elétrico, bateria, piano e órgão hammond, e guitarra base. O grupo começou a noite apenas com músicas instrumentais e, talvez não por acaso, devido a todas aquelas questões de linhagem real etc, todos eram negros. O irmão Marcílio imediatamente entendeu do quê eu estava falando, quando eu tinha falado sobre criar atmosferas, nuances, impressões e sensações: os caras foram no céu e no inferno, e toda a audiência foi junto, e gostando. Solos de Trumpete com surdina, órgão e sax, às vezes tocando forte, às vezes quase inaudível, mas nunca ao ponto de tirar o interresse da música....
Enfim, na terçeira música, Ele apareceu, velhinho, cansado e diabético, mas empunhando seu cetro e deusa negra, Lucille. Ele sentou-se e fez tudo além do que se esperava de um homem-deus de 76 anos de idade: cantou muito, solou soberbamente, e ainda contou histórias e "causos", tudo na boa tradição do bom São Louis Armstrong, de ser o entretenedor perfeito, seja tocando, cantando, e principalmente criando empatia com o público. Era admirável o controle que aquele ex-catador de algodão e motorista de trator tinha sobre as massas! Aquele garoto que andava 20 Km por estradas de terra escuras, da fazenda à cidade, empunhando um violão barato, para ganhar uns trocados na esquina, ou brechar shows pelos buracos das paredes, estava ali em cima do palco, com domínio absoluto sobre uma multidão de gente "esclarecida" e com Phd's. Ele não tinha só o controle do público, mas como também da música e, não por último, do grupo de cobras criadas que lhe dava suporte, tudo isso sem perder um cabelo de simplicidade como pessoa, e como músico. Uma curiosidade foi ver em cima do palco, que era enorme, num cantinho à esquerda, umas 50 pessoas que estavam sentadas numas cadeiras postas lá: a "pequena" família do Homem, com sua dezena de filhos, netos e bisnetos!
A seguir, escrevo o que eu consegui ouvir e aprender do mestre, que sempre praticou o que pregou, e que tocava lá do vale, e eu tão longe, num alto de um morro, quase trepado numa árvore. Eu estava, obviamente, ligeiramente bêbado, e emocionado, e a lua vinha surgindo exatamente por trás do palco-altar. Mas é assim minha versão, meus irmãos:
  1. Amarás a Música acima de todas as coisas.
  2. Darás de ti sempre o melhor.
  3. Nunca desistirás.
  4. Serás verdadeiro contigo mesmo.
  5. Buscarás sempre a simplicidade na Música.
  6. Trabalharás incansavelmente.
  7. Tocarás de todo o teu coração, de toda tua alma.
  8. Não cobiçarás o sucesso dos outros.
  9. Alegrarás sempre a platéia.
  10. Terás sempre um coração grato.
Bem, irmãos, foi assim que tudo aconteceu, ou acho que sim pois, olhando daqui agora, desse suposto futuro daquele dia, tudo parece muito irreal, ou muito envolvido numa áurea de sonho, principalmente por causa daquela lua enorme sobre nós, e das velas nas mesas.
No fim do culto-show, conseguimos nos aproximar dele, e assistimos às últimas músicas bem de perto, e ficamos muito emocionados. Infelizmente não tinhamos mais filme na máquina, ou pergaminho, e temos agora que nos contentar em guardar na memória. Guardar aquela noite incrível de um verão em Atlanta, onde vimos a face de Deus, e ele era negro, que nos dizia-cantava constantemente: how blue can you get?
Saímos direto para o primeiro bar que encontramos, e ficamos ali mudos, sorvendo lentamente a cerveja. Na cabeça, apenas um pensamento: how much blues you can get...
No vídeo, toda a realeza do Blues e Jazz, que eu até me recuso a nomear! Tá bem, só alguns nomes, alguns já até partiram dessa pra outra. Eric Clapton, Koko Taylor (já se foi) que canta uma das partes, Charles Musselwhite na gaita, Bo Didley(um dos pais do Rock) com sua guitarra quadrada, Jack Dejohnete na bateria, Dr John no piano , Billy Preston, que nos deixou dia desses, no teclado, Nathan East no baixo, Groover Washingon Jr (também tocando no céu), no sax, e por aí vai! O Clip foi tirado da final da batalha das bandas do filme "Blues Brothers 2000" . Um espetáculo! O local é provavelmente o "The house of the blues" de Nova Orleans, mas não tenho certeza. Parece muito com o lugar onde vi Junior Wells, no texto "O Blues Brother Original"...

terça-feira, junho 20, 2006

Depois de Ontem à Noite


Eu vejo um garoto. 7 anos de idade? Ele está na sala de casa dando gargalhadas. Está rodando como um pião. Rápido, mais rápido, mais! De repente, ele para e deita-se no chão com os olhos fechados...


Não consigo lembrar no que eu pensava quando eu rodava. Não consigo lembrar no que eu pensava ontem à noite. Quem inventou a ressaca, o Homem ou o mar? Ou seria a lua? Estou agora andando pela praia. A orla está arrasada. A linha de areia úmida se estende até perto da calçada. Lá, na demarcação de território do mar e da terra, estão todo tipo de dejetos: garrafas plásticas, uma boneca sem cabeça, flores murchas, uma sandália solitária e muito sargaço. O mar continua revolto, turvo, ameaçador. Parece que ele ainda acha pouco o que fez na praia. O sol não veio trabalhar, mas o vento sul e frio sim.

No que foi que eu pensei tanto ontem à noite? Deve ter sido importante ou não. Não consigo. Algumas cenas vêm partidas: estou abrindo a segunda garrafa de uísque. Vejo gente se mobilizando para comprar mais uma grade de cerveja. Todos parecem muito alegres, afinal ganhamos no futebol, por bem ou por mal, mas ganhamos. Vejo violões sendo empunhados. As pessoas cantam, bebem, fumam muito. Acabo de abrir minha segunda carteira numa tarde. Estamos todos alegres. Estamos? Acho que sim, mas não consigo.

Arrisco molhar os pés na água, mas está tão fria! Fico observando meu pé afundar na beira d'água. O que é que nos faz rodar como um pião até que o mundo começe a girar do mesmo jeito? Sinto-me tonto. O mar não só entende de ressacas, mas de vertigem também. Ele balança os barcos até vomitarmos tudo que nos mantêm em pé. A contrapartida é que vomitamos nele de volta. Estamos quites.

Tento perguntar aos gregos. Eu preciso entender por que rodamos como um pião até que o mundo rode também. Vejo agora Dionísio e ele está numa clareira da floresta. Há uma multidão ao redor dele. Ele conta estórias engraçadas. Bem, devem ser, pois todos estão rindo. Daqui da distância, ele parece um excelente anfitrião. Ele também mantém todos os copos cheios. São taças belíssimas de ouro e de prata e ele vai despejando um líquido espesso e escuro nas taças. Todos riem, se abraçam. Algumas mulheres - ou seriam ninfas - começam a dançar. Outros tocam flautas e liras. Daqui dessa praia devastada, tento perguntar a uma das mulheres. Ela tem cabelos longos e ruivos. Ela é belíssima. Ela se afastou um pouco do grupo e tenta balbuciar algumas palavras, mas não entendo. Pra minha surpresa ela começa a rodar e rir e... ainda vejo-a cantando a melodia mais linda que já ouvi. Desvio meu olhar para o resto do grupo e vários casais, trios, grupos, já estão se formando, se acariciando, se beijando. Não vejo mais Dionísio. Queria perguntar a ele um monte de coisas, a começar por qual safra era aquela daquele vinho, mas agora é tarde e o resto do grupo está muito ocupado para me dar atenção. Ao amanhancer vão estar todos caídos na grama inconscientes, desmemoriados, cansados. Fartos? Eles vão ter que se levantar e correr para suas casas antes que os pais, os maridos, as esposas, enfim, alguém perceba a ausência deles.

E eu aqui nesta praia nublada. Só. Mantenho meus pés na areia molhada. Quero eles bem firmes agora. Com a ajuda da água, a areia já dá uma volta no meu tornozelo. Sinto alguma estabilidade por fim.

Tenho uma lembrança engraçada: na casa onde passei a infância, na parte de dentro da porta do banheiro, havia uma cruz pintada à mão: era um sinal de uma promessa! Após passar a noite em vômitos e dores, um tio meu tinha prometido nunca mais beber! Ele nunca cumpriu a promessa, mas a cruz ficou lá pra sempre. Penso em riscar uma cruz na areia, na flor da água, que dure na proporção da minha determinação, mas desisto. Mas eu queria entender.

Tenho uma outra visão: eu me vejo agora com uns 13 anos, junto com meus primos, aqui mesmo nessa praia, todos bêbados. Era uma noite super agradável e tínhamos acabado de tomar uma garrafa de uísque nacional - e, é claro, ruim, mas eu achava que uísque era assim mesmo. Havíamos roubado a garrafa da casa dos tios e agora havíamos saído para comprar cigarros. Fumávamos um atrás do outro, sofregamente, e nunca mais cigarros foram tão gostosos. Mas eu ainda não entendo.

Tem uma outra cena da mesma época. Estamos, o mesmo grupo, numa cabana no interior do Rio Grande do Norte, no meio do nada. Era aniversário do garçom da lanchonete que frequentávamos e andamos léguas e léguas, como eles dizem, até chegarmos nessa casinha de barro batido e teto de palha. No interior, estamos sentados ao redor de uma mesinha baixa à altura dos joelhos, sentados num banco que era da extensão da mesa. No centro, está uma panela enorme cheia de um cozido das patas da vaca. Ao lado da panela, estão as garrafas de aguardente e os copos. O anfitrião, muito humilde, mas muito orgulhoso do seu banquete, enche todos os copos até a borda. Não, não eram dois dedos, como eu costumava ver nos botecos. Era até a borda. Até o limite da sanidade... então, todos nós, garotos, com aqueles bigodinhos ridículos ainda a crescer. A do santo já derramada no chão de areia batida, que eu nem me lembro qual entidade era, se católica ou africana, porque mesmo nem acreditava em um ou outro. Pensando bem, hoje em dia, acho que teria sido melhor ter acreditado em alguma coisa, mas enfim. Tínhamos, na outra mão, uma garfada do guisado. Virávamos os copos por garganta a dentro. Não, não era fazendo beicinho de golinho e golinho. Tinha de ser com a boca bem aberta de um gole só e sem caretas, porque éramos Homens. Em seguida, comíamos a carne gordurosa. Aquela sensação do líquido descendo, queimando o esôfago, espalhando-se por todo o estômago. O que era aquilo? Eu ainda não sei. Estou escrevendo pra entender, para gritar perguntas.

Tento pensar, mas a cabeça dói. Deixe eu tentar, enquanto meus pés se enterram mais e mais:

Ah isso é perversão fuga da realidade não querer crescer a entrega aos sentidos da carne a volta ao paganismo aos bacanais de Baco você não era Dionísio seu dissimulado que falava grego e agora latim ou seria uma falha moral mas uma falha moral de fábrica ou foi acidente de percurso desgaste natural das peças e então faríamos um "recall" para a troca de partes defeituosas ou a falta de deus ou justamente o contrário ou não a busca de

Estou tão angustiado. O corpo dói. Mas eu preciso.

Ouço uma voz por trás de mim. Não me lembro há quanto estou aqui. Tento me virar, mas os pés estão cravados na areia. Sinto-me ridículo. Uma senhora baixinha e gorda aparece ao meu lado. Ela tem um chapéu de palha por cima de um lenço na cabeça. A pele é bronzeada e enrugada. Na face, um sorriso desdentado. Ela parece tão familiar, mas de onde? Ela inicia a conversa:

-- O senhor num tá me reconhecendo, não?

-- É...

-- O doutor vinha muito aqui.

-- É verdade... -- Ainda tentando me desvencilhar da areia.

-- O senhor tá engraçado. Tá querendo virar uma bananeira, é?

Eu tento ensaiar um sorriso. Ela continua:

-- Olhe, já tá tudo armadinho ali, e eu tenho uma cadeira que aguenta o senhor, reforçada. O senhor engordou um pouquinho, não foi?

-- Pois é, já pensou? - Me viro na direção que ela apontava e começamos a andar para onde estava um carrinho de mão, que portava uma grande caixa de isopor, cercada de guarda-sóis cravados na areia.

-- Tá um dia feio meu filho... já vi que o movimento vai ser ruim. Mas eu faço um precinho bom pro senhor.

-- Que bom... escuta, a senhora alguma vez já rodou, rodou, feito um pião doido e depois fechou os olhos?

quinta-feira, junho 01, 2006

Uma conversa com o espelho e a música

Agora eu me pergunto como é que eu poderia ser diferente do que sou esse místico introvertido réu não confesso ao ponto de ser seduzido pelo objeto do mundo lá fora pelo que está por trás do véu de Maia dos budistas eu com toda aquela pressão católica por parte dos pais igreja primeira comunhão e depois eu mesmo o salto de fé crer porque é absurdo e loucos por causa da cruz de Cristo Kierkgard Agostinho Tomás e toda aquela balbúrdia de teólogos que existiram e mais uma porrada nascendo todos os dias nos quintais das igrejas todos à boca miúda revelando a poucos a nova revelação aquela que ninguém vê por que estão perdidos o mundo está perdido sim porque o espírito fala a todos e revela todos os dias um novo credo uma nova revelação a verdadeira interpretação da porra de uma vírgula do livro de Jó e que muda toda a visão e o conhecimento da vontade de Deus pra os homens e eu achando pouco indo mais fundo no meu vigor de coroinha cheio de juventude e credulidade em auto flagêlo na perda daquela mesma juventude em cânticos louvores orações jejuns anjos demônios e endemoniados lutas celestiais revelações provações tentações vitória do espírito sobre a carne e vice-versa sonhos profecias e apocalipses e depois... e depois a queda o vazio o abandono a solidão que estava lá o tempo todo mas eu não sabia e as bebedeiras a nau a perder-se em mares desconhecidos eu um adulto que parou aos 16 pra vida real humana agora sem deus ou um deus que não interfere que não se importa não mais um deuzinho pessoal amigão que vai a todo canto como um chaveiro
Como se livrar de todo esse passado carregado de loucura e transes? Aí vem o pouco que gostei de Krisnamurti: deixa estar, ou seria let it be dos Beatles ou let it bleed dos Stones? De qualquer forma consegui paz ao aprender a aceitar essas imagens que vêm de um passado recente que, queira eu ou não, fazem parte de mim. É minha estória. Eu apenas fico ali tipo meus amigos espíritas quando ouvem um ruído na casa: se é de paz pode entrar, irmão! Deixa rolar sem julgar, sem tentar fechar a porta, que não adianta.

E no meio de tudo isso, como um milagre, que ironia! Uma florzinha nasce bem no meio da calçada movimentada: Música. Aprender música naquele ambiente tão místico foi muito importante e me jogou nesse mundo musical já como um veterano. Um amigo blueseiro me definiu o que é tocar Blues: "É criar uma atmosfera em torno da música, que é muito simples, mas onde as pessoas vão se sentir bem, ou vão sentir dor, ou vão ter força pra enfrentar a mesma dor."

Quando vejo dali do palco as pessoas de olhos fechados, às vezes se emocionando com uma estória que às vezes nem é a delas...eu fico me perguntando, e aí pessoal, o que é que tá pegando, tá bom, tá doendo? Não é muito diferente dos meus 16 anos, já tocando num ambiente cheio de mistérios, manuseando algo que eu nem entendia direito, o poder da música, tentando trazer a presença do próprio Deus para o lugar. Acho que hoje continuo talvez sendo o mesmo. Sim, ainda sou o mesmo. Quem mexe com esse negócio de música entende o que estou falando, que música é apenas mais um tipo de oração, talvez a única que ainda consiga praticar...

Uma partida de Xadrez muito louca

Essa vai em resposta a Millôr, que disse (acertadamente, vá lá!) que o xadrez é excelente porque desenvolve a mente espetacularmente para....jogar xadrez!
Por incrível que pareça, o texto abaixo foi tirado das ondas da internet, em meio a uma partida de xadrez psicodélica, por correspondência, com meu parceiro Catão, que é advogado, presidente da OAB na cidade dele, como também formado em psicologia, e um bom filósofo da vida. A partida já se arrasta por mais de um mês, e sem querer até ficou em segundo plano, mas as mensagens-farpas filosófico-culturais, que vêm junto com os lances, estão pegando fogo! Ele me mandou um texto tirado de um livro que ele estava lendo. Um livro das ciências, como ele disse, na tentativa de contrabalancear o Romantismo exarcebado meu e dele também! Talvez fosse uma tentativa de defender a "transpiração" em primazia à "inspiração", não sei. Mas ele foi cutucar logo um músico de blues! Abaixo vão uma parte do texto e minha resposta:

Todos somos criativos. Cada vez que enfiamos um objeto conveniente sob a perna de uma mesa que balança ou que pensamos num jeito novo de subornar uma criança para que ela vista o pijama, usamos nossas faculdades para criar um resultado singular. Mas os gênios criativos distinguem-se não só por suas obras extraordinárias mas também por seu modo extraordinário de trabalhar; não se supõe que eles pensem como você e eu. Eles irrompem em cena como prodígios, enfants terribles, jovens rebeldes. Ouvem sua musa e desafiam a sabedoria convencional. Trabalham quando bate a inspiração e fervilham com insight enquanto o resto de nós caminha arduamente com passos de bebê pelas trilhas muitíssimo batidas. Põem de lado um problema e o deixam incubando no subconsciente; então, sem aviso, uma luz se acende e uma solução totalmente formada se apresenta. Ahá! O gênio deixa-nos obras-primas, um legado da criatividade irreprimida do inconsciente.

A imagem evidenciou-se no movimento romântico há duzentos anos e hoje se encontra firmemente arraigada. Consultores de criatividade cobram milhões de dólares das empresas por workshops dilbertianos sobre brainstorming, raciocínio lateral e fluxo do lado certo do cérebro, com resultados garantidos na transformação de cada administrador em um Edison. Conceberam-se teorias elaboradas para explicar o incrível poder do inconsciente sonhador para resolver problemas.

Como Alfred Russel Wallace, alguns concluíram que não pode haver uma explicação natural. Diz-se que os manuscritos de Mozart não têm correções. As melodias devem ter saído da mente de Deus, que escolheu expressar sua voz por intermédio de Mozart.

É pena que as pessoas criativas estejam no auge da criatividade quando escrevem sua autobiografia. Historiadores vasculharam os diários, cadernos, manuscritos e correspondência dessas pessoas em busca de sinais do vidente temperamental acometido periodicamente por raios do inconsciente. Infelizmente, descobriram que o gênio criativo está mais para Salieri do que para Amadeus.
1.Eu, no sentido estreito, popularesco, da palavra, também sou romântico. Uma vez escrevi uma longa carta de amor pra uma paquera. Ela ficou horrorizada, e mostrou pra todo mundo, perguntando se eu era doido, ou o quê. Nunca mais deixei um rastro registrado assim de uma paixão, nem em fotografia. Mas ainda adoro um platonismo. Acho super saudável!
2. Acredito piamente na inspiração, e rezo todas as noites por esse livro, de joelhos, e em contrição.
3. Acredito em transpiração também, muitas vêzes sobre a inspiração, mas isso não vende livros, nem cria lendas. Também acho que um reles lampejo de inspiração é muito melhor do que uma catedral erigida com cálculos meticulosos e pensados.
4. Charlie Parker, o genial saxofonista era um gênio, mas estudava 12 horas por dia. Seria ele, especificamente, um gênio se não estudasse? Ou ele não era um gênio, mas apenas alguém que estudou muito? Não podemos cientificamente comprovar.
5. BB King, entre outros, é um gênio, mas nunca aprendeu o que é um "dó re mi", quanto mais escrever uma partitura sem errar!
6. Os gênios podem surgir quando alguém se especializa demais num assunto, pensa o dia todo no tema e, de repente, têm uma "visão", uma "revelação", que ningúem talvez jamais teria. Outras vêzes é apenas acaso. Ele simplesmente entrou por uma porta que ninguém sabia e viu um mundo novo.
7. No fim, você pode chamar de gênio aquele sortudo que esbarrou numa dessas portas acima.
8. Ainda acho mais excitante a poética de Platão, Schopenhauer, Nietzche do que a lógica de Aristóteles, Russell ou Witgenstein, e que o diabo os carregue!
9. Não acredito em auto-biografias, nem a minha!
10. Tá pra nascer ainda um gênio que salve a reputação de Salieri, e convença o mundo, e que o enquadre naquela condição dos gênios injustiçados. A situação tá meio desesperadora depois desses 300 e tantos anos, sei lá!
11. No fim ainda acho que ser barroco, romântico e existencialista fica uma combinação perfeita. Tudo que for exagero, apaixonado demais, e por isso sujeito a erros, intuitivo, louco, falho e humano, fica bem, combina, com o ser humano, e o faz mais belo! O sonho ainda é sempre conquistar para o Homem toda a divindade que lhe é devida, por mais que sejamos tortos!

segunda-feira, maio 01, 2006

MISSÃO IMPOSSÍVEL (UMA METACRÔNICA)


(Dedicada a todos que sabem a dor e a delícia de encarar uma folha em branco)

Um bar num feriado de primeiro de Maio. Meio-dia. Movimento fraco ainda, com algumas famílias chegando para almoçar. Após três tentativas, finalmente consigo achar um lugar aberto. Estou com vontade de escrever algo para o blog. Saio do carro com duas folhas de papel. Tenho uma idéia sobre uma noite de blues no Recife. Não pressinto que estou diante de uma missão impossível.

A primeira cerveja já se foi, e eu olhando para o papel em branco. Peço a segunda, quando percebo que a primeira veio errada. O garçon tenta desculpar-se, mas não tem importância. Pelo menos ela estava gelada, tanto que nem percebi. Como se não bastasse a música Axé tocando baixinho no rádio, agora os maruins estão atacando minhas pernas alérgicas. E eu tentando escrever alguma coisa.

Já se foram dez linhas escritas numa das folhas, que acontecem de ser os versos de uma proposta da Caixa Econômica para a liberação do FGTS. Peço uma tripa de bode ao garçom, que me volta da cozinha cinco minutos depois para me comunicar que o cozinheiro não o tinha informado que não tinham tripa de bode. O cara já está se sentindo desconfortável, como quem está perdendo de 2X0 para uma cerveja errada e a miserável da tripa de bode. Agora ele tenta empatar com explicações e a vinda à minha mesa a cada 3 minutos para encher meu copo, e minha paciência.

Mais dez linhas no verso da proposta da CEF para a liberação do FGTS, e a inspiração parece que está chegando, agora que terminei a segunda cerveja, agora certa, e o segundo cigarro. Também consigo pedir, já confirmado duas vezes pelo garçom, e três pelo cozinheiro, duas linguiças de bode com farofa e vinagrete. Ufa! Que insistência com um bode, para quem saiu de casa para comer sushi, só pra encontrar um cadeado enorme trancando a porta!

Finalmente consigo passar para a segunda e última folha de papel. Esta um verso de uma lista de documentos da CEF...Fico também aliviado não só por ter conseguido escrever uma página inteira dizendo coisa nenhuma, provavelmente enchendo lingüiça.. de bode! Também estava com medo do garçon perceber, por uma curiosidade que já notei, que estou escrevendo sobre ele. O alívio foi em vão, pois exatamente quando escrevia a palavra garçon 3 linhas acima, o peste veio dar uma inspecionada no meu copo e, de tabela, no meu texto! Já penso em dobrar a página exatamente aqui, para então poder continuar, desta vez sem escrever a palavra garçom para não correr riscos. Justamente agora, ele traz as duas lingüiças de bode com farofa e vinagrete. Ponho discretamente a mão sobre o papel, mas ele já está desconfiado.

Traço a primeira lingüiça, que por sinal está uma delícia, e acendo meu terceiro cigarro. Continuo com a esperança de escrever sobre a noite de blues no Recife. Ôpa, o que vejo aqui, deixe-me ver: recebi um olhar de reprovação ao acender o cigarro. A gata está na mesa do lado com o namoradinho e parece que ela não gosta de Marlboros vermelhos, deve ser isso. Engraçado que eu cheguei primeiro, num bar aberto, e me dirigi para a mesa bem do canto, praticamente na calçada, só para ficar na minha e tentar escrever meu texto sobre a noite de blues no Recife. Mas agora estou sendo marcado implacavelmente por uma música Axé tocando bem baixinho no rádio, uma esquadra de mosquitos atacando minhas pernas alérgicas, um garçon curioso e agora essa gatinha não fumante! Mas logo hoje, meu amor, que venho lendo Nietzche e não tou afim de ser legal com ningúem? Estou cheio de estórias de super-homem, de quebra de éticas judaico-cristãs, moral escrava e sobrevivência do mais forte! É ruim, hein? Fumo tranquilamente meu terceiro Marlboro, enquanto a fumaça caminha sacanamente em direção ao narizinho sensível ao meu lado.

Consigo escrever minha primeira linha sobre a noite de blues no Recife: “São 6 da noite, e acordo suado. O quarto está escuro e apenas ouço o barulho do ventilador, que gira de um lado para o outro, soprando o ar quente das noites de Recife...”  Mas espera aí! O que foi agora? Um menino maltrapilho estaciona a bicicleta bem do meu lado. Ele deve ter uns 10 anos e parece ter vindo praticar mendicância no bar, a começar por mim, que já estava começando promissoramente meu texto sobre a noite de blues no Recife e que já andava açoitado por uma música Axé tocada bem baixinho no rádio que vem da cozinha, uma esquadra de uns 30 maruins, em formação, atacando minhas perninhas alérgicas, um garçom solícito e curioso, e uma gatinha sensível aos meus Marlboros vermelhos. Agora chega esse pirralho, que já começou o marketing com um casal que estava atrás de mim. Ele conta uma estória de que é o aniversário dele hoje e que estava indo para casa na favela da Rodinha, quando teve um mau pressentimento com relação a dois garotos que estavam numa bicicleta. Quando olho para a rua, os citados meninos passam e minha antena de maloqueiro da praia do Pina capta a mensagem. Eles nem olham, mas o pressentimento do menino bateu com o meu. Me viro pra ele e confirmo sem dó que ele vai ser assaltado e que fique por perto. “Olhe, é simples”, eu falo, “eles são grandes e você pequeno. Eles estão numa bicicleta só e você tem uma que não é nada mal. Que é que você acha?” Fico ali contemplando a cara do garoto enquanto ele pesa as chances.

Nesse meio tempo o casal com a gatinha do nariz sensível ao meu Marlboro vermelho resolve ir embora. Eles ainda me propiciam uma cena pra esse texto, que deveria ser sobre uma noite de blues no Recife, mas que no fim não vai dar em nada mesmo. Essa é uma cena que sempre tocou meu coração, singela, e que sempre quis escrever a respeito. É uma cena muito comum com casais jovens de classe média alta e que acontece quando a conta vem: o cara entrega o talão de cheques para a namorada preencher. Só isso. Eu nunca soube bem o que isso significa, e tenho vontade de perguntar, já no topo de minha quarta cerveja, mas depois me lembrei da cara dela quando acendi meu terceiro Marlboro vermelho e achei que não era uma boa idéia. E, afinal, quem escreve deve sempre procurar interpretar a situação em vez de ir atrás de fatos. Nem jornalista, que eu saiba. Pois é, acho que essa cena é um sinal de compromisso, de unção, como um rei que coloca o cetro ou espada no ombro do cavaleiro. Talvez um sinal pré-anel de noivado? Não sei. Talvez um sinal de que em breve tudo dele será dela também? Ou seria tipo: eu posso sair com muitas, mas só você preenche meu cheque? Acho que tenho que pensar mais sobre isso. Fico a observar as mãozinhas com unhas bem cuidadas, obviamente sem manchas de cigarro, preencher orgulhosamente o cheque, que ela retorna ao namorado para que seja assinado.

Passam-se 10 minutos e, confirmando o pressentimento, um dos garotos, o maior, volta andando até a esquina da rua onde eles tinham entrado. Que saco! Logo hoje que venho lendo Nietzche e toda aquela estória de super-homem, a quebra da ética judáico-cristã, moral escrava e, como bom Darwiniano, a sobrevivência do mais forte, de elevar a moral e ética dos senhores e não da plebe etc etc e lá vai esse ex-cristão velho tomar partido do pirralho, de graça.

Me levanto pra ir ao banheiro e desvio, sem avisar, em direção ao meio da rua. Chamo o grandote, que espreitava junto a uma árvore. Ele corre feito um louco até uma esquina a uns 200m onde o outro esperava. Chamo o pequeno que estava no bar, que me explica que a casa dele fica perto e que ele consegue chegar, mesmo que eles venham atrás daquela distância. “Então vai logo”, despachei o miserável. Fiquei marcando os dois malocas na esquina, enquanto o pequeno voava na outra direção. E assim acabou minha boa ação e a vontade de escrever sobre uma noite de blues no Recife, que já tinha começado promissoramente, mas que ainda levou uma pá de cal quando retornei à mesa e recebi um telefonema da mulher, que precisava do carro para resolver alguma problema. Missão impossível e abortada.

Chego em casa e minha filha pula de alegria no meu colo. Faço ela prometer nunca andar de bicicleta num primeiro de maio deserto. Ela sorri e diz sim, acho, com as únicas palavras que ela sabe: “papai” e "o au au"!

domingo, abril 23, 2006

Fato ou Ficção?

Escrevi essa para o teste de proficiência da Universidade de Michigan no ano passado. Engraçado que após o teste todos se queixavam dos temas. Diziam que os temas tinham sido dos mais idiotas de todos os tempos! Não parei pra pensar na hora, pois nem tempo temos pra ficar analisando temas. É escrever alguma coisa e pronto. Depois vi que realmente não passavam daqueles assuntos pra você encher lingüiça e encher o papel de chavões e o mesmo bla bla bla de sempre. Um era pra dizer se você aceitaria um emprego bem pago, mas que exigia viagens, ou se você ficaria fixo,fazendo o que gosta, embora não ganhando tão bem. Achei ridículo, como se aqui no Brasil tivéssemos toda essa flexibilidade e mobilidade nas chances de trabalho. A outra opção era sinistra, pois afirmava que todos nós guardamos alguma coisa de nossos pais como uma relíquia. Eu fiquei depois pensando que a maioria ali era de garotos de 18 anos, que moravam com os pais, que provavelmente ainda seriam bem jovens pra alguém ficar guardando objetos de lembrança. Acho que ninguém pegou esse tema e preferiu inventar alguma coisa com a outra opção. Eu achei mais fácil compor, de fato, algo no segundo. Fiquei com medo de ser reprovado, pois o texto, do jeito que foi saindo, não seguia aquelas regras idiotas de exposição ou introdução, desenvolvimento, e conclusão, sei lá, que eu nem me lembro mais dessas baboseiras de escola, e do jeito que gringo é...mas no final (recebi o resultado essa semana) eu acabei sendo aprovado. Deixa eu ver como traduzir:

“Eu tinha nove anos de idade e voltava para casa depois da aula. Minha escola ficava a poucos metros na mesma rua, e eu fazia o percurso sozinho. Ao me aproximar comecei a ouvir uma música belíssima que vinha lá da sala. Era uma voz de homem, rasgada, sofrida, que me deixou de cabelos em pé.
Abri a porta lentamente e, ao entrar, presenciei uma cena rara na minha vida: meu pai estava em casa. Não só isso, mas ele estava sentado na sala, numa cadeira que estava com o encosto pra frente. Ele apoiava os braços no encosto e lágrimas estavam rolando tranquilamente no rosto. A princípio fiquei preocupado, pensando ter havido alguma coisa. Ele sorriu pra mim e me tranquilizou. Me chamou para perto e disse que estava tudo bem. Ele explicou que a música tinha mexido com ele, e que eu não me preocupasse, que um dia eu iria entender aquilo tudo.
Foi incrível como naquele dia, com aquele fundo musical, e de improviso, tivemos um dos grandes papos juntos. Ele falou um pouco sobre música, vida, amor e morte também. Talvez não tenhamos tido outra conversa tão boa quanto aquela depois que cresci e, lá pelas tantas, perguntei quem afinal era aquele, ou aquilo que estava tocando. Ele sorriu e me disse que ´aquilo` era música negra americana, Soul Music. Ele esticou a mão e puxou um daqueles bolachões de vinil. Era uma capa de fundo branco que estampava um negão com um sorriso enorme, e óculos escuríssimos. No rodapé estava lá o nome do cara, que iria me acompanhar pra o resto da vida: Ray Charles...
Bem, já se foram uns 30 anos por aí, e dia desses estava em casa de meus pais quando me lembrei dessa estória. Perguntei a ele onde andava aquele velho álbum, se ele não tinha perdido nas mudanças. Ele deu uma risada e disse que pelo menos alguma coisa eu ia levar dele, além das dívidas, e que o velho disco já estava com meu nome no testamento! Demos uma boa risada, pois sabíamos que aquele bolachão marcava um grande momento que tivemos juntos.”

Bem, que eu me lembre, foi mais ou menos isso que escrevi. Mas a idéia hoje não era aborrecer minha meia dúzia de leitores com uma redação de 20 linhas de um vestibular!
Alguns anos atrás li uma biografia de Hemingway e lá eram discutidos alguns processos, técnicas, que ele empregava no seus livros. O que mais me chamou a atenção foi a composição de personagens e acontecimentos, que ele fundia numa mistura miserável de fatos, ficção, imaginação etc. Claro que às vêzes, propositalmente, ou não, os personagens não ficavam assim tão irreconhecíveis, ao ponto de vários amigos ou desafetos escreverem, ou tentarem quebrar a cara dele, por ele ter contado casos comprometedores de um ou de outro.
Depois disso fiquei com aquela maior desconfiança de escritor. Claro, sabemos que quem escreve não consegue passar um parágrafo sem contar um mentira! Faz parte do ofício. O relacionamento do escritor com o público é justamente sobre essa cumplicidade: olha, eu vou inventar aqui uma estória pra te contar, e te entreter nos dias frios na sua cama, que tal? Você faz de conta que é verdade e se emociona.
Mas depois fiquei pensando nesse filão das biografias, ou auto-biografias. Quanto de fatos você realmente quer receber? Quanto de ficção? Bem, minha conclusão é que a vida real, com algumas exceções, não faz um grande livro. Tem que entrar a mão de quem escreve, a imaginação, o exagero, senão a coisa fica um tédio. Acabei de ler uma de B.B King. Foi comovente e inspiradora, e dá pra sentir sinceridade no texto. Talvez a vida dele seja uma daquelas exceções, acho. Nem fiquei querendo saber onde ele tava me enrolando, ou tava contando a verdade. Me deixei levar na conversa do negão!
Agora, se um amador como eu consegue, em trinta minutos, inventar um biografia, imagine um profissional que leva anos trabalhando num projeto!

Eu morava perto da escola. Fato

Eu vi meu pai chorando quando voltei da escola. Composição de fatos e personagens.

Eu tinha uns 13 anos e voltava da PRAIA, quando encontrei minha mãe e dois tios bebendo na sala. Acho que já iam na segunda garrafa de whisky e ouviam MARIA BETÂNIA, um dos primeiros dela, e eles tavam chorando! Eu fiquei meio assustado, mas minha MÃE disse que tudo estava bem, e que eles tavam só emocionados! Fui para o banheiro todo desconfiado ha ha ha! Anos depois ELA voltava da praia e EU estava com um amigo bebendo e ouvindo a desgraçada da NANA CAYMMI. Estávamos chorando do mesmo jeito! Eu peguei meu pai chorando um dia mas NÃO ERA VOLTANDO DA ESCOLA. Ele estava sentado na posição que descrevi mas NÃO CONVERSAMOS coisa alguma. Ele ouvia um disco sim, de JOHN LEE HOOKER, também negro, mas blues das antigas!

Foi incrível como naquele dia, com aquele fundo musical, e de improviso, tivemos um dos grandes papos juntos. Ele falou um pouco sobre música, vida, amor e morte também. Composição.

Na verdade esse papo foi com minha MÃE, e foi quando ela ouvia o safado do VINÍCIUS DE MORAES. Eu devia ter uns 20 OU 25 ANOS e ouvi uma longa lição de como se portar na vida e no amor, e de até como cozinhar para o amor depois do amor ha ha ha! Ela disse-me que eu observasse o exemplo do poetinha que tinha no enterro dele todas as 9(?) ex-mulheres(!)abraçadas e chorando pelo velho!

A estória do ´testamento` é meio inventada também.

Minha mãe disse que era provável que eu ficasse com todos os discos, uns 500, depois que eles morressem, já que eu era quem tinha mais afinidade musical com eles: Jazz, Blues e Clássicos por parte de pai, e Música brasileira por parte de mãe.

Mas será que nem o assunto principal da redação se salva? A tal da recordação, ou objeto de lembrança? Até agora não consigo me lembrar de ter coisa alguma desse tipo lá em casa, mas o disco que descrevi de Ray Charles existe na casa deles, uma coletânea. Mas meu favorito dele, que não conseguiu entrar na redação, talvez porque achei que faltava apelo, é um cor púrpura, com apenas um par de óculos na frente, onde ele canta umas canções de amor de rasgar o coração. Talvez fosse uma dessas que o garoto de nove anos ouvia quando retornava da escola...