Eu vi, meus irmãos, a face de Deus, e ele era negro, sentado no seu trono, cercado de anjos e arcanjos, todos a tocar instrumentos musicais, numa tarde quente e úmida de Atlanta.
Era um sábado de agosto, no verão de 2002. Eu estava com o irmão baixista, Marcílio, que estava passando uns dias conosco, recém-convertido ao Blues, através dos cultos realizados no finado La Prensa, que ele provavelmente um dia relatará a mesma visão, mas talvez com palavras diferentes. Para mim, como aconteceu foi assim:
Recebi o chamado do Senhor pela manhã, através de uma voz interior, com ordens de ir ao Chastain Park, no norte da cidade, tentar comprar ingressos para um show de Blues que iria acontecer à noite, ao ar livre, e em noite de lua. Chegamos lá e a bilheteria estava fechada. Encontramos um peregrino da Inglaterra, que tinha acabado de chegar na cidade, e tinha recebido o mesmo chamado, através de um jornal. Tentamos de todas as formas contactar telefones pra comprar os ingressos, sem sucesso. Fomos para casa cansados e confusos. Como conseguiríamos ver o show sem os ingressos? A mesma voz me falou novamente, e disse que eu confiasse, e que voltasse às 5 da tarde, quando as portas se abririam.
À tarde retornamos, eu e o irmão Marcílio, e descobrimos que os ingressos mais baratos que, por "coincidência", eram os que podíamos pagar, estavam esgotados. Ficamos abatidos, mas desta vez não desanimamos. Começamos a andar pelas ruas vizinhas e, orando, pedimos orientação, ou que um anjo nos fosse enviado, para nos dar suporte. Talvez ele pudesse nos materializar, discretamente, num cantinho lá dentro, quem sabe! Após alguns minutos, avistamos um negro alto, que caminhava falando no celular, e ele tinha um pequeno cartaz na mão, que parecia dizer "I Need Tickets". Começamos a segui-lo com esperanças renovadas. Depois de algum tempo conseguimos alcançá-lo e, um pouco nervosos, perguntamos se ele tinha entradas. Ele primeiro olhou para os lados, nos estudou dos pés à cabeça e só depois é que disse que, até então, nada...
Continuamos com fé pela rua deserta, e começamos a ter a certeza firme de que assistiríamos ao show. Se conseguimos encontrar um cambista de bobeira assim, pensamos, numa rua deserta nos Estados Unidos, era porque alguma coisa estava mesmo para acontecer. Avistamos um outro homem a uns cem metros, parado na beira da estrada, e corremos para ele . Chegamos lá e ele disse que só tinha um, e de $60, que era o mais caro. Neste momento o outro homem veio correndo para nos dizer que tinha acabado de conseguir dois, e dos mais baratos, e que nos venderia pelo mesmo preço da bilheteria! O milagre que tanto esperávamos! Mas irmãos, eu faltei com a fé, e dando uma de Tomé, que pediu a Cristo para mostrar a chagas, demonstrei desconfiança, achando que iríamos ser roubados, e perguntei se o ingresso era "quente" mesmo, ao que ele deu uma gargalhada enorme, onde mostrava as iniciais dele, acho, encrustadas em ouro nos dentes frontais! Disse que só comprava mais barato, e assim vendia pelo preço normal, satisfazendo assim aos clientes! Que sonho de cambista! Não tivemos dúvidas de que ele era o anjo que tínhamos pedido.
Finalmente entramos na área do show e encontramos lá o peregrino inglês, que tinha conseguido ingressos de outra forma, talvez com outro cambista, quer dizer, anjo. Nos congratulamos, e começamos a nos preparar espiritualmente, bebendo um suposto néctar sagrado australiano, de nome Foster, em latas de 600ml, e que Deus mantenha ardendo no fogo do hades quem inventou coisa tão ruim, mas afinal nos instalamos. Percebemos, como marinheiros de primeira viagem, que os outros fiéis vieram muito mais preparados: o parque permitia que comes e bebes fossem trazidos, e todos carregavam verdadeiros toneis de cerveja e lanches. Nessa área mais barata, sentávamos na grama, enquanto na outra parte havia cadeiras e mesas, onde todos trouxeram não só champanhe e vinho, mas também velas, para quando a noite chegasse.
Tivemos ainda que aguentar dois shows de abertura, de uns caras que de vez em quanto tentavam tocar blues. Foi quando começei a doutrinar o recém convertido irmão Marcílio, a respeito das sacanagens do Blues, e como o problema em si, tecnicamente falando, não era executar a música, mas como criar uma atmosfera propícia, baseado naquilo que você é, e sente, e como trazer a platéia pra participar também, seja para rir ou chorar.
Após umas duas horas, finalmente, A Banda entrou no palco, ainda sem o Homem, mas mostrando para que veio. Já estava começando a anoitecer, e a lua, enorme, começava a ensaiar a entrada também. O séquito sagrado e real era composto de 4 metais, que eram sax, tenor e alto, mais trumpete e trombone, como também um contrabaixo elétrico, bateria, piano e órgão hammond, e guitarra base. O grupo começou a noite apenas com músicas instrumentais e, talvez não por acaso, devido a todas aquelas questões de linhagem real etc, todos eram negros. O irmão Marcílio imediatamente entendeu do quê eu estava falando, quando eu tinha falado sobre criar atmosferas, nuances, impressões e sensações: os caras foram no céu e no inferno, e toda a audiência foi junto, e gostando. Solos de Trumpete com surdina, órgão e sax, às vezes tocando forte, às vezes quase inaudível, mas nunca ao ponto de tirar o interresse da música....
Enfim, na terçeira música, Ele apareceu, velhinho, cansado e diabético, mas empunhando seu cetro e deusa negra, Lucille. Ele sentou-se e fez tudo além do que se esperava de um homem-deus de 76 anos de idade: cantou muito, solou soberbamente, e ainda contou histórias e "causos", tudo na boa tradição do bom São Louis Armstrong, de ser o entretenedor perfeito, seja tocando, cantando, e principalmente criando empatia com o público. Era admirável o controle que aquele ex-catador de algodão e motorista de trator tinha sobre as massas! Aquele garoto que andava 20 Km por estradas de terra escuras, da fazenda à cidade, empunhando um violão barato, para ganhar uns trocados na esquina, ou brechar shows pelos buracos das paredes, estava ali em cima do palco, com domínio absoluto sobre uma multidão de gente "esclarecida" e com Phd's. Ele não tinha só o controle do público, mas como também da música e, não por último, do grupo de cobras criadas que lhe dava suporte, tudo isso sem perder um cabelo de simplicidade como pessoa, e como músico. Uma curiosidade foi ver em cima do palco, que era enorme, num cantinho à esquerda, umas 50 pessoas que estavam sentadas numas cadeiras postas lá: a "pequena" família do Homem, com sua dezena de filhos, netos e bisnetos!
A seguir, escrevo o que eu consegui ouvir e aprender do mestre, que sempre praticou o que pregou, e que tocava lá do vale, e eu tão longe, num alto de um morro, quase trepado numa árvore. Eu estava, obviamente, ligeiramente bêbado, e emocionado, e a lua vinha surgindo exatamente por trás do palco-altar. Mas é assim minha versão, meus irmãos:
Amarás a Música acima de todas as coisas.
Darás de ti sempre o melhor.
Nunca desistirás.
Serás verdadeiro contigo mesmo.
Buscarás sempre a simplicidade na Música.
Trabalharás incansavelmente.
Tocarás de todo o teu coração, de toda tua alma.
Não cobiçarás o sucesso dos outros.
Alegrarás sempre a platéia.
Terás sempre um coração grato.
Bem, irmãos, foi assim que tudo aconteceu, ou acho que sim pois, olhando daqui agora, desse suposto futuro daquele dia, tudo parece muito irreal, ou muito envolvido numa áurea de sonho, principalmente por causa daquela lua enorme sobre nós, e das velas nas mesas.
No fim do culto-show, conseguimos nos aproximar dele, e assistimos às últimas músicas bem de perto, e ficamos muito emocionados. Infelizmente não tinhamos mais filme na máquina, ou pergaminho, e temos agora que nos contentar em guardar na memória. Guardar aquela noite incrível de um verão em Atlanta, onde vimos a face de Deus, e ele era negro, que nos dizia-cantava constantemente: how blue can you get?
Saímos direto para o primeiro bar que encontramos, e ficamos ali mudos, sorvendo lentamente a cerveja. Na cabeça, apenas um pensamento: how much blues you can get...
No vídeo, toda a realeza do Blues e Jazz, que eu até me recuso a nomear! Tá bem, só alguns nomes, alguns já até partiram dessa pra outra. Eric Clapton, Koko Taylor (já se foi) que canta uma das partes, Charles Musselwhite na gaita, Bo Didley(um dos pais do Rock) com sua guitarra quadrada, Jack Dejohnete na bateria, Dr John no piano , Billy Preston, que nos deixou dia desses, no teclado, Nathan East no baixo, Groover Washingon Jr (também tocando no céu), no sax, e por aí vai! O Clip foi tirado da final da batalha das bandas do filme "Blues Brothers 2000" . Um espetáculo! O local é provavelmente o "The house of the blues" de Nova Orleans, mas não tenho certeza. Parece muito com o lugar onde vi Junior Wells, no texto "O Blues Brother Original"...