domingo, abril 23, 2006

Fato ou Ficção?

Escrevi essa para o teste de proficiência da Universidade de Michigan no ano passado. Engraçado que após o teste todos se queixavam dos temas. Diziam que os temas tinham sido dos mais idiotas de todos os tempos! Não parei pra pensar na hora, pois nem tempo temos pra ficar analisando temas. É escrever alguma coisa e pronto. Depois vi que realmente não passavam daqueles assuntos pra você encher lingüiça e encher o papel de chavões e o mesmo bla bla bla de sempre. Um era pra dizer se você aceitaria um emprego bem pago, mas que exigia viagens, ou se você ficaria fixo,fazendo o que gosta, embora não ganhando tão bem. Achei ridículo, como se aqui no Brasil tivéssemos toda essa flexibilidade e mobilidade nas chances de trabalho. A outra opção era sinistra, pois afirmava que todos nós guardamos alguma coisa de nossos pais como uma relíquia. Eu fiquei depois pensando que a maioria ali era de garotos de 18 anos, que moravam com os pais, que provavelmente ainda seriam bem jovens pra alguém ficar guardando objetos de lembrança. Acho que ninguém pegou esse tema e preferiu inventar alguma coisa com a outra opção. Eu achei mais fácil compor, de fato, algo no segundo. Fiquei com medo de ser reprovado, pois o texto, do jeito que foi saindo, não seguia aquelas regras idiotas de exposição ou introdução, desenvolvimento, e conclusão, sei lá, que eu nem me lembro mais dessas baboseiras de escola, e do jeito que gringo é...mas no final (recebi o resultado essa semana) eu acabei sendo aprovado. Deixa eu ver como traduzir:

“Eu tinha nove anos de idade e voltava para casa depois da aula. Minha escola ficava a poucos metros na mesma rua, e eu fazia o percurso sozinho. Ao me aproximar comecei a ouvir uma música belíssima que vinha lá da sala. Era uma voz de homem, rasgada, sofrida, que me deixou de cabelos em pé.
Abri a porta lentamente e, ao entrar, presenciei uma cena rara na minha vida: meu pai estava em casa. Não só isso, mas ele estava sentado na sala, numa cadeira que estava com o encosto pra frente. Ele apoiava os braços no encosto e lágrimas estavam rolando tranquilamente no rosto. A princípio fiquei preocupado, pensando ter havido alguma coisa. Ele sorriu pra mim e me tranquilizou. Me chamou para perto e disse que estava tudo bem. Ele explicou que a música tinha mexido com ele, e que eu não me preocupasse, que um dia eu iria entender aquilo tudo.
Foi incrível como naquele dia, com aquele fundo musical, e de improviso, tivemos um dos grandes papos juntos. Ele falou um pouco sobre música, vida, amor e morte também. Talvez não tenhamos tido outra conversa tão boa quanto aquela depois que cresci e, lá pelas tantas, perguntei quem afinal era aquele, ou aquilo que estava tocando. Ele sorriu e me disse que ´aquilo` era música negra americana, Soul Music. Ele esticou a mão e puxou um daqueles bolachões de vinil. Era uma capa de fundo branco que estampava um negão com um sorriso enorme, e óculos escuríssimos. No rodapé estava lá o nome do cara, que iria me acompanhar pra o resto da vida: Ray Charles...
Bem, já se foram uns 30 anos por aí, e dia desses estava em casa de meus pais quando me lembrei dessa estória. Perguntei a ele onde andava aquele velho álbum, se ele não tinha perdido nas mudanças. Ele deu uma risada e disse que pelo menos alguma coisa eu ia levar dele, além das dívidas, e que o velho disco já estava com meu nome no testamento! Demos uma boa risada, pois sabíamos que aquele bolachão marcava um grande momento que tivemos juntos.”

Bem, que eu me lembre, foi mais ou menos isso que escrevi. Mas a idéia hoje não era aborrecer minha meia dúzia de leitores com uma redação de 20 linhas de um vestibular!
Alguns anos atrás li uma biografia de Hemingway e lá eram discutidos alguns processos, técnicas, que ele empregava no seus livros. O que mais me chamou a atenção foi a composição de personagens e acontecimentos, que ele fundia numa mistura miserável de fatos, ficção, imaginação etc. Claro que às vêzes, propositalmente, ou não, os personagens não ficavam assim tão irreconhecíveis, ao ponto de vários amigos ou desafetos escreverem, ou tentarem quebrar a cara dele, por ele ter contado casos comprometedores de um ou de outro.
Depois disso fiquei com aquela maior desconfiança de escritor. Claro, sabemos que quem escreve não consegue passar um parágrafo sem contar um mentira! Faz parte do ofício. O relacionamento do escritor com o público é justamente sobre essa cumplicidade: olha, eu vou inventar aqui uma estória pra te contar, e te entreter nos dias frios na sua cama, que tal? Você faz de conta que é verdade e se emociona.
Mas depois fiquei pensando nesse filão das biografias, ou auto-biografias. Quanto de fatos você realmente quer receber? Quanto de ficção? Bem, minha conclusão é que a vida real, com algumas exceções, não faz um grande livro. Tem que entrar a mão de quem escreve, a imaginação, o exagero, senão a coisa fica um tédio. Acabei de ler uma de B.B King. Foi comovente e inspiradora, e dá pra sentir sinceridade no texto. Talvez a vida dele seja uma daquelas exceções, acho. Nem fiquei querendo saber onde ele tava me enrolando, ou tava contando a verdade. Me deixei levar na conversa do negão!
Agora, se um amador como eu consegue, em trinta minutos, inventar um biografia, imagine um profissional que leva anos trabalhando num projeto!

Eu morava perto da escola. Fato

Eu vi meu pai chorando quando voltei da escola. Composição de fatos e personagens.

Eu tinha uns 13 anos e voltava da PRAIA, quando encontrei minha mãe e dois tios bebendo na sala. Acho que já iam na segunda garrafa de whisky e ouviam MARIA BETÂNIA, um dos primeiros dela, e eles tavam chorando! Eu fiquei meio assustado, mas minha MÃE disse que tudo estava bem, e que eles tavam só emocionados! Fui para o banheiro todo desconfiado ha ha ha! Anos depois ELA voltava da praia e EU estava com um amigo bebendo e ouvindo a desgraçada da NANA CAYMMI. Estávamos chorando do mesmo jeito! Eu peguei meu pai chorando um dia mas NÃO ERA VOLTANDO DA ESCOLA. Ele estava sentado na posição que descrevi mas NÃO CONVERSAMOS coisa alguma. Ele ouvia um disco sim, de JOHN LEE HOOKER, também negro, mas blues das antigas!

Foi incrível como naquele dia, com aquele fundo musical, e de improviso, tivemos um dos grandes papos juntos. Ele falou um pouco sobre música, vida, amor e morte também. Composição.

Na verdade esse papo foi com minha MÃE, e foi quando ela ouvia o safado do VINÍCIUS DE MORAES. Eu devia ter uns 20 OU 25 ANOS e ouvi uma longa lição de como se portar na vida e no amor, e de até como cozinhar para o amor depois do amor ha ha ha! Ela disse-me que eu observasse o exemplo do poetinha que tinha no enterro dele todas as 9(?) ex-mulheres(!)abraçadas e chorando pelo velho!

A estória do ´testamento` é meio inventada também.

Minha mãe disse que era provável que eu ficasse com todos os discos, uns 500, depois que eles morressem, já que eu era quem tinha mais afinidade musical com eles: Jazz, Blues e Clássicos por parte de pai, e Música brasileira por parte de mãe.

Mas será que nem o assunto principal da redação se salva? A tal da recordação, ou objeto de lembrança? Até agora não consigo me lembrar de ter coisa alguma desse tipo lá em casa, mas o disco que descrevi de Ray Charles existe na casa deles, uma coletânea. Mas meu favorito dele, que não conseguiu entrar na redação, talvez porque achei que faltava apelo, é um cor púrpura, com apenas um par de óculos na frente, onde ele canta umas canções de amor de rasgar o coração. Talvez fosse uma dessas que o garoto de nove anos ouvia quando retornava da escola...

sexta-feira, abril 21, 2006

Na Barraca de Seu Biu

“O dia começou pra mim logo quando o sol deus as caras. Ia ser um dia longo, mas não um dia ruim, muito pelo contrário. Dia carregado de lembranças e imagens: fui, pela primeira vez, apresentar minha filha à praia do Pina...
O dia também foi de ensaio, tarde, às 11 da noite...como sempre, nessas noites, estou na barraca de seu Biu. Tento digerir as ideias. Tento dar voz aos acontecimentos do dia, colocar palavras na boca do sentimento, do coração. É lá que estou tentando organizar este texto na cabeça. Lembro de Clarice, que dizia que o verdadeiro significado estava no espaço em branco das linhas. Ela sabia escrever umas tiradas boas. Eu não...”

A barraca fica a vinte metros do estúdio, onde ensaio com minha banda de Rock. Impossível pensar num lugar mais estratégico para um bar. Sempre gosto de chegar mais cedo para me “concentrar” nas músicas. Fico ali tomando uma Skol da Antártica ou uma caninha ou ambas... Gosto também da variedade de petiscos: saquinhos de castanha ou batatinha frita industrializada. Às vezes, temos amendoim, também, mas só às sextas-feiras, que o movimento é mais forte. Os deliciosos tira-gostos ficam expostos na parede presos por clipes. Uma noite, lá pelas tantas, depois de não sei quantas, não havia nem castanha nem batatinha, mas tinha algo pendurado lá. Eu disse a seu Biu:

-- Este é o acepipe mais estranho que o senhor já serviu aqui. Então ele respondeu:

--Meu filho, isto não é tira-gosto. Isto é um alarme de carros que estou vendendo!

--Ah sim, perdão

Antes de falar de seu Biu, é muito importante dizer que a barraca também fica a duzentos metros da praia do Pina. Essa é a praia que comparece aos meus sonhos quase que diariamente. Ou seria "diariamente e noturnamente", como falava um "escritor" de estratégias de futebol hoje no rádio? É, eu também ouço resenhas esportivas na rádio AM...

Hoje o movimento no bar está fraco e o penúltimo pinguço acaba de sair. O cara já estava bem alto e foi cambaleando pela rua escura. A opção da noite dele? Conhaque Dreher diluído em água. Coisa de profissional. Seu Biu não está muito a fim de estender a noite. Vai lentamente arrastando as sandálias até uma das portas. Olha o céu e depois a rua. Acho que está conferindo se não vem algum cliente tardio a caminho. Ele volta e começa a procurar os cadeados. E o pessoal do ensaio atrasado... Tento ganhar tempo puxando conversa. A coisa é difícil porque ele é meio surdo. Eu sempre me sinto estranho exagerando nos lábios o pedido da cerveja. E ele sempre leva alguns segundos antes de reagir, sempre de sobressalto, como que atingindo por um tapa. É como se minha voz não se movesse na velocidade do som, mas fosse caminhando preguiçosamente até os ouvidos dele: u...m...a.... cer...vee...jaaa!

Hoje, pela primeira vez, também começo a me perguntar sobre a idade dele. Tento adivinhar, mas não é fácil. Acho que a lentidão não bate com o aspecto físico. Mas dizem que os negros sempre enganam na idade. Como já estou curioso mesmo, pergunto.

-- 72 anos -- ele responde com um ensaio de sorriso.

Ele continua a mexer com os ferrolhos da porta. E eu em pânico.

-- Faz muito tempo que o senhor tem esse bar?

--40 anos.

As respostas vêm muito lacônicas. Mas pra minha surpresa ele toma a iniciativa:

--Mas faz 50 que cheguei aqui.

Só então percebo que já paguei a conta e o troco já está em cima do balcão. Talvez por isso a vontade dele de fechar o bar. Enquanto o velho fala, parece que meus olhos estão enchendo d`água. Tenho a impressão de que estou com um riso na boca, não sei. Com os olhos nele, empurro lentamente o dinheiro de volta no balcão, para não assustá-lo. Tenho medo de que ele pare de falar. Ele conta estórias de juventude e de praia. Pra meu alívio, ele pega o dinheiro enquanto fala:

-- O que vai ser?

--Uma aguardente por favor.

Ele põe um copo no balcão e, enquanto olha para mim, vai emborcando a garrafa de Pitú. Meus olhos estão no copo que, a qualquer momento, vai esborrar.

-- O senhor não vai parar?

--Aqui, quem diz é o freguês.

--Então pare pelo amor de Deus! Depois vão reclamar, com razão, acho, que estou vindo bêbado para os ensaios.

Ele veio morar na avenida Boa Viagem nos anos 50, uns dez anos antes de eu nascer. Sinto um pouco de inveja. Eu, como exilado da presença da praia. Ele, como um herói da resistência. Ao longo dos anos, todos os moradores tradicionais foram sendo expulsos da vizinhança da praia belíssima. Dos anos sessenta em diante, chegaram os prédios de luxo destruindo todas as casas da beira mar e das ruas vizinhas. Ele começou a me contar estórias de sua juventude e do seu relacionamento com a praia, com o mar e com as mulheres. Engraçado como eram parecidas nossas estórias! Aquele mar imenso ali na frente, aquele cheiro de sal. A praia sempre foi tão onipresente, tão estável, que nem notávamos que o mundo mudava em volta. Até o dia em que a perdemos...

Só pude ficar com a impressão de que a praia do Pina foi uma grande mãe compreensiva, amorosa e, antes de tudo, testemunha imutável de várias gerações que passaram pelas areias dela, tomando banho de mar, pescando, ou simplesmente se amando. Tive o sentimento de pertencer à história da praia de alguma forma, de fazer parte, de alguma maneira, ao relacionamento com aquelas areias, jangadas e mar da praia do Pina.

A praia tinha sido minha grande amiga desde minha infância. Cheguei lá com 8 anos de idade. Era o início dos anos 70 e, naquele tempo que conseguia, não sei como, ser um pouco mais inocente do que o de hoje, eu me dava ao luxo de fazer, intacto, os cem metros que me distanciavam da minha casa para o mar. Nas férias, só ia a casa para almoçar e jantar e, diga-se de passagem, pela manhã, só chegava bem tarde, pois chegar nas areias antes das 11 da manhã era motivo para ser chamado “porteiro da praia”. Então, almoço era por volta das 3 da tarde, para retornar ao mar, muitas vezes, com o mesmo sal e roupa no corpo...

As areias providenciavam as peladas de futebol, frescobol e voleibol. O mar entregava generosamente os peixes e as ondas para surfar. No meio de tudo isso, vinha o contato com as meninas, que flertavam durante o dia para, no cair da tarde, puxar assunto quando não havia mais gente na praia...

Já depois do 30 anos, tive que me afastar do Brasil e do Pina por alguns anos. Fui para um lugar distante onde a cidade nem tinha mar. Mas a praia habitou - e habita - meus sonhos o tempo todo, onipresente. Sempre dizia a um amigo que eu seria como as velhas tartarugas, que sempre voltam às areias onde nascem, não importa se uma centena de anos depois. Para nossa surpresa, quando afinal retornei, na mesma semana, ficamos chocados com uma matéria de primeira página do jornal , na qual era mostrada uma foto de uma velha tartaruga que, ao que parece, tinha encalhado nas areias da praia para morrer...claro que isso foi motivo pra uma dezena de cervejas em busca do significado!

Praia imutável, perene, com a mesma areia de sempre? Eu não sei. Na adolescência, não escapei, também, dos livros de memórias de Hermilo Borba Filho, o escritor e teatrólogo, nos quais ele narrava a vida nas areias do Pina nos anos 40, onde ele chegava de bonde, parando em frente ao finado, hoje, restaurante Maxime. Eu poderia juntar Hermilo com as estórias de seu Biu nos anos 50 e 60 e minhas pelos 70 a 90....não há como achar que a praia sobreviverá a todos nós, ou a algum tsunami malvado, com seus arrecifes ainda aparando as ondas do Atlântico por centenas de anos...

“Entrei nas areias carregando minha filha que nem andava ainda, com aquele sentimento estranho de repetição, de déjà vu. No fundo, talvez, estivesse revivendo um ritual de tantos outros pais. Mas aquela imagem minha carregando-a nos braços não passou em branco para mim, nem para ela: enquanto a carregava, meu olhar estava fixo no rosto dela. Eu queria anotar cada reação, cada sobressalto, surpresa, medo... mas nada. Aquele olhar...não de espanto, que tantos me avisaram que iria haver, mas um sorriso, que foi desenhando-se lentamente, um sorriso de quem reconhece - ou reencontra - uma velha amiga...a garota olhou para mim, como dizendo que estava tudo bem e que eu já poderia relaxar...

Larguei-a na areia perto da água e ela , sem medo algum, como quem corre para um grande amor, imediatamente engatinhou de encontro às ondas...”