Escrevi essa para o teste de proficiência da Universidade de Michigan no ano passado. Engraçado que após o teste todos se queixavam dos temas. Diziam que os temas tinham sido dos mais idiotas de todos os tempos! Não parei pra pensar na hora, pois nem tempo temos pra ficar analisando temas. É escrever alguma coisa e pronto. Depois vi que realmente não passavam daqueles assuntos pra você encher lingüiça e encher o papel de chavões e o mesmo bla bla bla de sempre. Um era pra dizer se você aceitaria um emprego bem pago, mas que exigia viagens, ou se você ficaria fixo,fazendo o que gosta, embora não ganhando tão bem. Achei ridículo, como se aqui no Brasil tivéssemos toda essa flexibilidade e mobilidade nas chances de trabalho. A outra opção era sinistra, pois afirmava que todos nós guardamos alguma coisa de nossos pais como uma relíquia. Eu fiquei depois pensando que a maioria ali era de garotos de 18 anos, que moravam com os pais, que provavelmente ainda seriam bem jovens pra alguém ficar guardando objetos de lembrança. Acho que ninguém pegou esse tema e preferiu inventar alguma coisa com a outra opção. Eu achei mais fácil compor, de fato, algo no segundo. Fiquei com medo de ser reprovado, pois o texto, do jeito que foi saindo, não seguia aquelas regras idiotas de exposição ou introdução, desenvolvimento, e conclusão, sei lá, que eu nem me lembro mais dessas baboseiras de escola, e do jeito que gringo é...mas no final (recebi o resultado essa semana) eu acabei sendo aprovado. Deixa eu ver como traduzir:
“Eu tinha nove anos de idade e voltava para casa depois da aula. Minha escola ficava a poucos metros na mesma rua, e eu fazia o percurso sozinho. Ao me aproximar comecei a ouvir uma música belíssima que vinha lá da sala. Era uma voz de homem, rasgada, sofrida, que me deixou de cabelos em pé.
Abri a porta lentamente e, ao entrar, presenciei uma cena rara na minha vida: meu pai estava em casa. Não só isso, mas ele estava sentado na sala, numa cadeira que estava com o encosto pra frente. Ele apoiava os braços no encosto e lágrimas estavam rolando tranquilamente no rosto. A princípio fiquei preocupado, pensando ter havido alguma coisa. Ele sorriu pra mim e me tranquilizou. Me chamou para perto e disse que estava tudo bem. Ele explicou que a música tinha mexido com ele, e que eu não me preocupasse, que um dia eu iria entender aquilo tudo.
Foi incrível como naquele dia, com aquele fundo musical, e de improviso, tivemos um dos grandes papos juntos. Ele falou um pouco sobre música, vida, amor e morte também. Talvez não tenhamos tido outra conversa tão boa quanto aquela depois que cresci e, lá pelas tantas, perguntei quem afinal era aquele, ou aquilo que estava tocando. Ele sorriu e me disse que ´aquilo` era música negra americana, Soul Music. Ele esticou a mão e puxou um daqueles bolachões de vinil. Era uma capa de fundo branco que estampava um negão com um sorriso enorme, e óculos escuríssimos. No rodapé estava lá o nome do cara, que iria me acompanhar pra o resto da vida: Ray Charles...
Bem, já se foram uns 30 anos por aí, e dia desses estava em casa de meus pais quando me lembrei dessa estória. Perguntei a ele onde andava aquele velho álbum, se ele não tinha perdido nas mudanças. Ele deu uma risada e disse que pelo menos alguma coisa eu ia levar dele, além das dívidas, e que o velho disco já estava com meu nome no testamento! Demos uma boa risada, pois sabíamos que aquele bolachão marcava um grande momento que tivemos juntos.”
Bem, que eu me lembre, foi mais ou menos isso que escrevi. Mas a idéia hoje não era aborrecer minha meia dúzia de leitores com uma redação de 20 linhas de um vestibular!
Alguns anos atrás li uma biografia de Hemingway e lá eram discutidos alguns processos, técnicas, que ele empregava no seus livros. O que mais me chamou a atenção foi a composição de personagens e acontecimentos, que ele fundia numa mistura miserável de fatos, ficção, imaginação etc. Claro que às vêzes, propositalmente, ou não, os personagens não ficavam assim tão irreconhecíveis, ao ponto de vários amigos ou desafetos escreverem, ou tentarem quebrar a cara dele, por ele ter contado casos comprometedores de um ou de outro.
Depois disso fiquei com aquela maior desconfiança de escritor. Claro, sabemos que quem escreve não consegue passar um parágrafo sem contar um mentira! Faz parte do ofício. O relacionamento do escritor com o público é justamente sobre essa cumplicidade: olha, eu vou inventar aqui uma estória pra te contar, e te entreter nos dias frios na sua cama, que tal? Você faz de conta que é verdade e se emociona.
Mas depois fiquei pensando nesse filão das biografias, ou auto-biografias. Quanto de fatos você realmente quer receber? Quanto de ficção? Bem, minha conclusão é que a vida real, com algumas exceções, não faz um grande livro. Tem que entrar a mão de quem escreve, a imaginação, o exagero, senão a coisa fica um tédio. Acabei de ler uma de B.B King. Foi comovente e inspiradora, e dá pra sentir sinceridade no texto. Talvez a vida dele seja uma daquelas exceções, acho. Nem fiquei querendo saber onde ele tava me enrolando, ou tava contando a verdade. Me deixei levar na conversa do negão!
Agora, se um amador como eu consegue, em trinta minutos, inventar um biografia, imagine um profissional que leva anos trabalhando num projeto!
Eu morava perto da escola. Fato
Eu vi meu pai chorando quando voltei da escola. Composição de fatos e personagens.
Eu tinha uns 13 anos e voltava da PRAIA, quando encontrei minha mãe e dois tios bebendo na sala. Acho que já iam na segunda garrafa de whisky e ouviam MARIA BETÂNIA, um dos primeiros dela, e eles tavam chorando! Eu fiquei meio assustado, mas minha MÃE disse que tudo estava bem, e que eles tavam só emocionados! Fui para o banheiro todo desconfiado ha ha ha! Anos depois ELA voltava da praia e EU estava com um amigo bebendo e ouvindo a desgraçada da NANA CAYMMI. Estávamos chorando do mesmo jeito! Eu peguei meu pai chorando um dia mas NÃO ERA VOLTANDO DA ESCOLA. Ele estava sentado na posição que descrevi mas NÃO CONVERSAMOS coisa alguma. Ele ouvia um disco sim, de JOHN LEE HOOKER, também negro, mas blues das antigas!
Foi incrível como naquele dia, com aquele fundo musical, e de improviso, tivemos um dos grandes papos juntos. Ele falou um pouco sobre música, vida, amor e morte também. Composição.
Na verdade esse papo foi com minha MÃE, e foi quando ela ouvia o safado do VINÍCIUS DE MORAES. Eu devia ter uns 20 OU 25 ANOS e ouvi uma longa lição de como se portar na vida e no amor, e de até como cozinhar para o amor depois do amor ha ha ha! Ela disse-me que eu observasse o exemplo do poetinha que tinha no enterro dele todas as 9(?) ex-mulheres(!)abraçadas e chorando pelo velho!
A estória do ´testamento` é meio inventada também.
Minha mãe disse que era provável que eu ficasse com todos os discos, uns 500, depois que eles morressem, já que eu era quem tinha mais afinidade musical com eles: Jazz, Blues e Clássicos por parte de pai, e Música brasileira por parte de mãe.
Mas será que nem o assunto principal da redação se salva? A tal da recordação, ou objeto de lembrança? Até agora não consigo me lembrar de ter coisa alguma desse tipo lá em casa, mas o disco que descrevi de Ray Charles existe na casa deles, uma coletânea. Mas meu favorito dele, que não conseguiu entrar na redação, talvez porque achei que faltava apelo, é um cor púrpura, com apenas um par de óculos na frente, onde ele canta umas canções de amor de rasgar o coração. Talvez fosse uma dessas que o garoto de nove anos ouvia quando retornava da escola...
“Eu tinha nove anos de idade e voltava para casa depois da aula. Minha escola ficava a poucos metros na mesma rua, e eu fazia o percurso sozinho. Ao me aproximar comecei a ouvir uma música belíssima que vinha lá da sala. Era uma voz de homem, rasgada, sofrida, que me deixou de cabelos em pé.
Abri a porta lentamente e, ao entrar, presenciei uma cena rara na minha vida: meu pai estava em casa. Não só isso, mas ele estava sentado na sala, numa cadeira que estava com o encosto pra frente. Ele apoiava os braços no encosto e lágrimas estavam rolando tranquilamente no rosto. A princípio fiquei preocupado, pensando ter havido alguma coisa. Ele sorriu pra mim e me tranquilizou. Me chamou para perto e disse que estava tudo bem. Ele explicou que a música tinha mexido com ele, e que eu não me preocupasse, que um dia eu iria entender aquilo tudo.
Foi incrível como naquele dia, com aquele fundo musical, e de improviso, tivemos um dos grandes papos juntos. Ele falou um pouco sobre música, vida, amor e morte também. Talvez não tenhamos tido outra conversa tão boa quanto aquela depois que cresci e, lá pelas tantas, perguntei quem afinal era aquele, ou aquilo que estava tocando. Ele sorriu e me disse que ´aquilo` era música negra americana, Soul Music. Ele esticou a mão e puxou um daqueles bolachões de vinil. Era uma capa de fundo branco que estampava um negão com um sorriso enorme, e óculos escuríssimos. No rodapé estava lá o nome do cara, que iria me acompanhar pra o resto da vida: Ray Charles...
Bem, já se foram uns 30 anos por aí, e dia desses estava em casa de meus pais quando me lembrei dessa estória. Perguntei a ele onde andava aquele velho álbum, se ele não tinha perdido nas mudanças. Ele deu uma risada e disse que pelo menos alguma coisa eu ia levar dele, além das dívidas, e que o velho disco já estava com meu nome no testamento! Demos uma boa risada, pois sabíamos que aquele bolachão marcava um grande momento que tivemos juntos.”
Bem, que eu me lembre, foi mais ou menos isso que escrevi. Mas a idéia hoje não era aborrecer minha meia dúzia de leitores com uma redação de 20 linhas de um vestibular!
Alguns anos atrás li uma biografia de Hemingway e lá eram discutidos alguns processos, técnicas, que ele empregava no seus livros. O que mais me chamou a atenção foi a composição de personagens e acontecimentos, que ele fundia numa mistura miserável de fatos, ficção, imaginação etc. Claro que às vêzes, propositalmente, ou não, os personagens não ficavam assim tão irreconhecíveis, ao ponto de vários amigos ou desafetos escreverem, ou tentarem quebrar a cara dele, por ele ter contado casos comprometedores de um ou de outro.
Depois disso fiquei com aquela maior desconfiança de escritor. Claro, sabemos que quem escreve não consegue passar um parágrafo sem contar um mentira! Faz parte do ofício. O relacionamento do escritor com o público é justamente sobre essa cumplicidade: olha, eu vou inventar aqui uma estória pra te contar, e te entreter nos dias frios na sua cama, que tal? Você faz de conta que é verdade e se emociona.
Mas depois fiquei pensando nesse filão das biografias, ou auto-biografias. Quanto de fatos você realmente quer receber? Quanto de ficção? Bem, minha conclusão é que a vida real, com algumas exceções, não faz um grande livro. Tem que entrar a mão de quem escreve, a imaginação, o exagero, senão a coisa fica um tédio. Acabei de ler uma de B.B King. Foi comovente e inspiradora, e dá pra sentir sinceridade no texto. Talvez a vida dele seja uma daquelas exceções, acho. Nem fiquei querendo saber onde ele tava me enrolando, ou tava contando a verdade. Me deixei levar na conversa do negão!
Agora, se um amador como eu consegue, em trinta minutos, inventar um biografia, imagine um profissional que leva anos trabalhando num projeto!
Eu morava perto da escola. Fato
Eu vi meu pai chorando quando voltei da escola. Composição de fatos e personagens.
Eu tinha uns 13 anos e voltava da PRAIA, quando encontrei minha mãe e dois tios bebendo na sala. Acho que já iam na segunda garrafa de whisky e ouviam MARIA BETÂNIA, um dos primeiros dela, e eles tavam chorando! Eu fiquei meio assustado, mas minha MÃE disse que tudo estava bem, e que eles tavam só emocionados! Fui para o banheiro todo desconfiado ha ha ha! Anos depois ELA voltava da praia e EU estava com um amigo bebendo e ouvindo a desgraçada da NANA CAYMMI. Estávamos chorando do mesmo jeito! Eu peguei meu pai chorando um dia mas NÃO ERA VOLTANDO DA ESCOLA. Ele estava sentado na posição que descrevi mas NÃO CONVERSAMOS coisa alguma. Ele ouvia um disco sim, de JOHN LEE HOOKER, também negro, mas blues das antigas!
Foi incrível como naquele dia, com aquele fundo musical, e de improviso, tivemos um dos grandes papos juntos. Ele falou um pouco sobre música, vida, amor e morte também. Composição.
Na verdade esse papo foi com minha MÃE, e foi quando ela ouvia o safado do VINÍCIUS DE MORAES. Eu devia ter uns 20 OU 25 ANOS e ouvi uma longa lição de como se portar na vida e no amor, e de até como cozinhar para o amor depois do amor ha ha ha! Ela disse-me que eu observasse o exemplo do poetinha que tinha no enterro dele todas as 9(?) ex-mulheres(!)abraçadas e chorando pelo velho!
A estória do ´testamento` é meio inventada também.
Minha mãe disse que era provável que eu ficasse com todos os discos, uns 500, depois que eles morressem, já que eu era quem tinha mais afinidade musical com eles: Jazz, Blues e Clássicos por parte de pai, e Música brasileira por parte de mãe.
Mas será que nem o assunto principal da redação se salva? A tal da recordação, ou objeto de lembrança? Até agora não consigo me lembrar de ter coisa alguma desse tipo lá em casa, mas o disco que descrevi de Ray Charles existe na casa deles, uma coletânea. Mas meu favorito dele, que não conseguiu entrar na redação, talvez porque achei que faltava apelo, é um cor púrpura, com apenas um par de óculos na frente, onde ele canta umas canções de amor de rasgar o coração. Talvez fosse uma dessas que o garoto de nove anos ouvia quando retornava da escola...