segunda-feira, abril 04, 2011

VASECTOMIA EM TRÊS ATOS

Eu: sala fria essa da espera e esse povo que não me chama. Já não aguento mais de sono. Mas quem foi que inventou mesmo esse negócio de cortar o pinto, eu ou a mulher? Também quem mandou começar a produção tão tarde. Agora tou sem saco, sem sacanagem, de criar mais menino. E aquele negócio de criar filho como se fosse neto não é muito divertido: “é seu avô, é, filho?” não tem graça...o cara querendo se aposentar e o pimpolho ainda nas crises de adolescência...tou fora. O pai com setenta anos e o menino preocupado com o vestibular, chorando a primeira namorada... Não, vamo parar por aqui. Mas precisava vir em jejum? Tou com mais fome do que preocupação. Preocupação com o quê, mesmo? Dizem que homem corre de uma vasecto como um Bebum corre do AA, mas o pior é o mico de sair mostrando a pitoca amedrontada às enfermeiras calejadas, assim, tudo tão sem clima!

Enfermeira : o senhor pode vir por aqui?

Eu: fui falar...

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Eu: humm, deixa eu me ver no espelho...mas como eu tou lindo com esta bata que é dez números abaixo do meu e a bunda de fora! Também quem mandou ser grande e gordo. Aqui não é lugar pra desfile de beleza, meu filho, muito pelo contrário!

Enfermeiro: o senhor pode deitar nesta maca que vamos dar um passeio.

Eu: passeio, é? espero que não seja pra o IML.! Mas que visão interessante esta! Que perspectiva nova da vida, rapaz! Daqui da maca é tudo lâmpada e teto, lâmpada e teto, lâmpada e teto...Então é assim quando estamos pra empacotar, humm, negócio estranho, mas não deixa de ser curioso...Bump! Observa os quebra-molas, ô motorista de maca! Cê tirou carteira onde, no INSS? FDP!

Enfermeiro: pronto chegamos, senhor, rapidinho.

Eu: rapidinho...tu quase me derruba ali na curva! Humm, deixa eu ver... Putz, tem logo quatro enfermeiras pra assistir a este espetáculo, que excitante, pra não dizer o contrário!

Anestesista: pois é, como eu ia dizendo, as escalas estão uma merda. Trabalhei o fim de semana passado todo e já vou trabalhar de novo!

Enfermeira: é doutora, mas tá assim mesmo,tá difícil.

Eu: vocês tão reclamando de quê, hem? Por que não foram arranjar outra profissão? Vão dizer que não sabiam que medicina é regime de escravidão!

Enfermeira: Mal dá pra descansar. Acaba gerando acidentes...

Eu: espero que hoje, ESPECIALMENTE, de coração, vocês tenham descansado, que eu não tenho nada a ver com seus problemas trabalhistas. Já é bem duro vir aqui ser cortado e atrapalhar a rotina de vocês!

Anestesista: vou dar ao senhor uma medicação para dormir e depois as meninas vão fazer a assepsia do local.

Eu: Ótimo que eu durma, pra não ver esta tragédia!

Cirurgião: tá tudo tranquilo aí?

Eu: tá. Tirando a fome. Olha, vê se não erra a mão lá embaixo!

Médico: fica tranquilo que qualquer merda você vai ser o primeiro a saber.

Eu: humm...não gosto de médico com senso de humor, muito menos com meu pinto no meio da piada...que soninho bom...eu devia ter um tubo desse oxigênio em casa, delícia...

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Anestesista: pronto, senhor, tudo correu bem e agora vamos de volta pra maca e para a sala de recuperação.

Eu: tudo bem agora... Eu quero ver quando passar a sua anestesia!

Enfermeiro: vamos lá , senhor, de volta para a outra sala?

Eu: tudo bem, mas vê se vai sem pressa agora, ô desgraçado! E tome lâmpada e teto, lâmpada e teto, lâmpada... teto...

Enfermeiro: pronto. O senhor ficará aqui repousando. Fique tranquilo que estamos tomando conta do senhor.

Eu: sei...

Médica 1: hoje levei um esporro da chefe porque cheguei atrasada.

Médica 2: Ela é durona.

Médica 1: Eu hemm! Não quero nem saber. A reforma do apartamento está a todo vapor e a empregada não sabe das coisas, cê entende, né...eu tinha que ficar pra receber a mesa nova, a coisa mais linda.

Eu: se eu fosse teu chefe, tu já tava na rua...

Moribundo 1: Aaaiiiiii!!!

Médica 1: o senhor tá sentindo dor?

Eu: não, deve ser o prazer de estar aqui, doutora!

Médica 1: qualquer coisa estamos atentas aqui, viu?

Eu: atenta ao quê? A chegada do guarda-roupas novo?

Médica 2: cê já viu as minhas fotos de Bariloche?

Médica 1: Uau, mas você está liiiiinda com esta roupa de neve!

Médica 2: ah tu sabes que é tudo alugada, né? O problema às vezes era com os pés, que ficavam meio úmidos...

Médica 1: ah, menina, eu vou te ensinar um macete, que é colocar uma meia, depois um saco plástico e depois outra meia. O pé fica sequinho!

Moribundo 2: ahhhhh!!!

Médica 2: Mas eu não sabia desse macete, que merda! Diga, senhora, tá sentindo alguma coisa? A senhora é branquinha assim mesmo?

Eu: essa criatura deve tá é morrendo!

Médica 1: a senhora é linda!

Eu: falsa!!!

Médica 1: e o senhor, está se sentindo bem?

Eu: Eu?? melhor quando sair daqui.

Médica 1: daqui a pouco te libero, não tem pressa.

Eu: promessa é dívida, viu? Mas continua com aqueles macetes das meias, eu tava adorando!!! E aqueles hotéis na beira dos lagos, não têm ar condicionado, mesmo? Só sei dormir com aquele barulho, nem que seja no polo Norte!

Cirurgião: e aí, tá novo? Alguma dúvida?

Eu: só três perguntinhas: quando saio daqui, sexo e cerveja, por favor?

Cirurgião: se quiser já pode ir, sexo...humm... vamos ver, cerveja no fim de semana...

Eu: humm, hoje é quinta, então cerveja amanhã! Beleza de Creuza!!!

Cirurgião: Bem....

Eu: Táxi! Quer dizer, Maca!

Enfermeiro: Senhor?

Eu: me leve para onde estão minha roupas, si vous plaît!

Enfermeiro: Ahnn?

Eu: Lâmpada e teto, lâmpada e teto, lâmpada e teto...que saco....por falar em saco, melhor comprar um de gelo para o meu...

quarta-feira, março 16, 2011

Uma Lágrima (a um amigo)

Hoje é um daqueles dias de lembranças e reflexões: oito de março, data de aniversário de um velho amigo que partiu. Como ele gostava de dizer: dia internacional da Mulher: "sou o presente de Deus a todas elas!"  Assim como gostava o poeta Vinicius, nossa amizade foi totalmente realizada em torno de mesas de bar. Éramos diferentes em muitos aspectos, mas sempre achávamos pontos de contato para conversar e viver a vida. Por alguns anos fomos inseparáveis. Tínhamos dois apelidos para a dupla. Na fartura, “Johnnie e Walker”. Na pobreza, “Pi e Tu”, uma aguardente pernambucana...

Ah agora até lembrei-me de uma vez que nos encontramos e não bebemos: meu casamento. E ele era o padrinho! Meu casamento foi relâmpago: cinco meses de namoro. Amigos inconformados, “cê tá louco?” diziam uns, outros disseram que não iriam testemunhar aquele suicídio. Fiquei espantado com a reação. Numa noite, cheguei pra ele e contei do escândalo que estavam fazendo. Ele tranquilamente falou: “eles não sabem de nada, siga seu coração”. E ali mesmo achei meu padrinho. 

Para a cerimônia na igreja, os velhos amigos ainda ficaram surpresos com a ausência da birita. Pediram intervenção do super padrinho, das autoridades eclesiásticas, da noiva, sem sucesso: normas da igreja, ponto final. Um outro colega, astutamente, chegou bêbado – o casamento era às nove da matina! - mas com uma justificativa convincente: “já que não permitem que bebamos aqui, eu trouxe a cachaça 'nim mim' ”! Menino inteligente aquele! Mas no grande dia, apesar da lei seca, o padrinho só fazia rir orgulhoso do “cargo”. Ele levou tão a sério a “nomeação” que até fez uma vaquinha – uma extorsão, reclamaram! – com os colegas do trabalho e me conseguiu dez dias numa pousada em Porto de Galinhas! Lua-de- mel de luxo!

Flashbacks e Tiradas: dirigindo no caminho para a praia de Tamandaré. No banco traseiro, uma caixa cheia de cervejas geladas. No rádio, alguma música boa, bate-papo bom. Eu dirigia a sessenta por hora, no máximo. Comento: “parece que o mundo todo está nos ultrapassando”. “E daí?” , ele responde, “ pra que pressa, se o que vamos fazer lá já estamos fazendo aqui mesmo?”. Corretíssimo em tese, noves fora beber dirigindo! 

Hinos para todas as ocasiões: “Sentimental eu Fico” de Renato Teixeira: “sentimental eu fico quando pouso na mesa de um bar eu sou...um lobo cansado, carente de cerveja...e de velhos amigos...”. “O Negócio é Amar” de Dolores: “tem gente que jura que não volta mais, mas jura sabendo que não é capaz...”. E a preferida, de Toquinho, “Aquarela”: “numa folha qualquer eu desenho um navio de partida/com alguns bons amigos bebendo de bem com vida...”.

Paixão comum: o Santa Cruz FC. Íamos aos jogos juntos, mas eu assistia sem a companhia dele. Explico: quem vai a campo desses times de povão sabe das manias de torcedor supersticioso. Nós tínhamos até uma em comum: quando havia na escalação do outro time algum nome escalafobético, tipo “Estaleta”, “Boquinha”, “Cachacinha” etc, tínhamos certeza de que iríamos perder com um gol deles. Era Batata! Outros rezam agarrados com um terço na hora dos escanteios contra. Outros dão as costas para o campo em faltas perigosas. Mas a mania do meu amigo era ir até o degrau mais alto da geral e ficar zanzando de um lado pro outro, o jogo todo, praticamente de um gol a outro, lamuriando algum mantra. Eu não tinha paciência nenhuma para aquilo!

Mas, pensando bem, era melhor ele ficar longe mesmo. Numa das poucas vezes em que se aquietou, final de campeonato, campo lotado, nós dois, que fôramos goleiros na escola, comentamos que o cara tinha deixado o gol muito aberto no lado esquerdo, numa falta do meio da rua. Zagueirão nosso corre meio quilômetro pra bater e Boooomm: bala de canhão voa por cima da barreira e vai lá no ângulo desguarnecido estufando as redes. Gol e campeonato. Estádio vem abaixo e eu junto com o infeliz de 140 quilos pendurado no meu pescoço! Caímos feio. Ele torceu o joelho de ficar inchado. Eu todo arranhado.

Causos verídicos: passamos anos repetindo o pedido em todos os bares, na esperança da mesma réplica e tréplica, mas em vão. Foi assim: chegamos numa barraca no fim do mundo, embaixo de um viaduto. Calor miserável. Sentamos com toda a empáfia e esperamos a mulher gorda vir nos atender com toda aquela má vontade: “senhora, queremos uma cerveja Antártica do casco escuro e estupidamente gelada”. A mulher nos olhou com desprezo e disparou: “olhe, só tem Kaiser, do casco claro e tá meio quente.” Nós dois humilhados, nem um bar num raio de quilômetros, com medo de que a mulher nem servisse mais nada, imploramos em uníssono: “traga duas, pelo amor de Deus!!!” Mas em seguida a mulher amenizou, vendo a nossa falta de noção do lugar, quando perguntamos por tira-gosto: “meu filho, não trabalhamos com isso, mas, se o senhor quiser, eu mando meu filho pegar umas seriguelas lá no quintal”...Aceitamos encarecidamente!

Fundação do GSBB: tradução : “Grupo de Salvamento e Busca ao Bêbado”. Tudo começou na noite anterior. Compramos uma garrafa de uísque para assistir a uma reapresentação de “Quincas Berro D'água”, de Jorge Amado, com o genial Paulo Gracindo. Conto emblemático para os boêmios. A estória na série todos conhecem, Quincas vai a um bar e pede uma cachaça. Servem, de sacanagem, água pura, e o resultado inusitado é que Quincas morre fulminantemente! No filme, parece que os amigos não percebem que Quincas morreu e saem arrastando o defunto pelas farras costumeiras. A cara de felicidade do morto que Gracindo faz é uma obra prima!

Terminado o filme, nossa garrafa já vazia, levantei-me e disse que seria inaceitável ir pra casa e que iria tomar alguma saideira alhures. Meu companheiro levantou-se indignado perguntando se eu pensava em ir sozinho. Resultado: saímos batendo e fechando todos os bares numa segunda-feira à noite, até que o deixei em casa, imprestável, às 3 da manhã. Não sei como, ainda encontrei companhia e bar aberto no caminho pra casa... Cheguei em casa às 10 da manhã. Tinha que trabalhar às 12...

Acordo com a cigarra do apartamento, onde morava só. Abro a porta e está lá o companheiro inseparável perguntando se tudo estava bem. “que horas são”, pergunto, “2 da tarde”, ele responde sorrindo, e completou: “quando vi o carro lá fora, fiquei mais tranquilo”. Ainda me aceitaram no trabalho, mas fiquei mais cuidadoso com os horários depois desse resgate...

Falando em resgates, outros foram necessários, mas parece que o GSBB estava fadado ao fracasso, por falta de cooperação dos bêbados. Quando ainda solteiros e sem filhos, num dos poucos momentos de sanidade em meio às bebedeiras, eu larguei um pressentimento na mesa , entre um copo e outro: “na pisada que vamos, acho que nosso fim não é muito promissor, meu velho”. Choramos. Mas passou. Arranjamos casa, esposas e filhas. Fui morar em outro país. Ele foi para outro estado. Parecia que a vida estava entrando nos eixos e de uma maneira mais sóbria. Ledo engano.

Volto depois de alguns anos e já começaram a me trazer más notícias. Teu amigo vai mal, não consegue parar. Vai perder emprego. Família. Drama. Faço contato. Ele nega tudo. “Exageram”, “Não tem problema nenhum”. Amigos viajam pra conversar com ele e aconselhá-lo. Tentativas de resgate... Nada. Tudo em vão. No final das contas, ele estava indo pelo precipício, de fato, e arrastando todos que o amavam. Foi uma agonia, ainda, de quatro ou cinco anos, mas quando a morte veio, parece ter sido mais um descanso do que uma derrota.

Antes do fim, tivemos ainda dois encontros que nunca imagináramos nem nos piores pesadelos: naquela noite estávamos ali, surrealmente, no mesmo bar, na mesma mesa, mas não estávamos, teoricamente, bebendo juntos! As coisas estavam totalmente fora de controle e eu já havia recusado vários encontros que fossem em bares ou com bebida. Mas naquela noite ele chegou de surpresa. Sentou-se. O garçom trouxe um copo. Ele pediu que eu colocasse a cerveja no copo. Neguei. Ele soltou um risinho amargo, chamou o garçom de volta e pediu uma cerveja só para ele. 

Logo após, começamos uma troca amarga de acusações e de queixas por aquela situação. Por um lado, ele dizia que eu não tinha autoridade moral para reprová-lo. Por outro, eu atirava de volta que ele tinha perdido tudo por causa da merda de uma cachaça. Tento trazer alguma razão de volta, chantageio, falo dos filhos, do futuro, de que ainda tem jeito, de que eu ainda quero ir a um churrasco na casa dele, pra tomar alguns daqueles sucos de tomate com decoração afrescalhada! Nada. Ele continuava, irritantemente, virando um copo atrás do outro. Foi nossa única briga em vinte anos. Antes de sairmos, ainda amenizamos o tom e nos despedimos. Ele provavelmente foi a outro bar, embora tivesse prometido que iria para casa. Perdi as esperanças. Fiquei à espera de um telefonema fatídico.

Um ano depois, recebo um aviso: “se você ainda quer vê-lo, apresse-se”. Ele estava internado há mais de 40 dias. Quadro avançado de cirrose. Convulsões. Toda aquela merda de fim de jogo. Chego tremendo no hall do hospital. Pai chora num canto. Um amigo no outro. Tomo coragem e entro  naquele quarto de hospital. Ele põe a mão para protejer os olhos, não reconhece de primeira. De repente tenta abrir um sorriso. Beijo-o e sento ao lado da cama. Ficamos de mãos dadas um bom tempo. Conversamos sem amargura. Relembramos todas as estórias contadas acima e tantas outras. Demos algumas risadas. Falamos do filhos, do time do coração, das viagens juntos, de uma frágil esperança de futuro. Tudo como nos bons tempos. Ou quase tudo.

Ficamos ali por quase uma hora. Eu com aquela sensação terrível de saudade, de falta de um futuro que não iria haver. Fiquei também com a impressão incômoda de que ele teria feito melhor por mim do que eu fiz por ele, mas já era tarde para remorsos. A conta já estava fechada e, como sempre, com direito a saideira. Antes de ir, fiquei aos pés dele enquanto a enfermeira vinha dar os remédios da noite. Peguei o telefone do quarto para ligar depois, voltar outro dia...Desci e fui fumar um cigarro na lanchonete na frente do hospital. Um misto de tristeza e de saudade.

Dois dias depois: coma. Mais uns dias e estou distante num chalé na serra em Gravatá PE. Recebo o  telefonema inevitável. Ouço o comunicado com uma frieza estranha. Era um fim de tarde na serra. Temperatura agradável. Cigarras cantando forte. Sento-me numa cadeira do terraço. Acendo um cigarro. Um turbilhão de lembranças boas vem surgindo. O fim desatroso quase não aparece, embora alguns “por quês” surjam aqui e acolá. Quando vou ali pela metade do cigarro, ouço aquela voz inconfundível, que ele fazia quando estava manhoso: “poxa, mas nem uma lágrima?” Chorei sem freios.

Dias depois, comentei com minha amiga, comadre e mãe da filha dele: “caramba, fiquei numa sinuca de bico no dia em que ele partiu". "Por quê?" "Não sabia se tomava uma em homenagem ou se ficava no seco em protesto..." "Se nós conhecíamos bem nosso amigo, se você ficasse no seco, ele teria ficado muito chateado com você".  "Então fiz bem em entornar aquele vinho chileno..." "Não tenha dúvida". "Então Amém - eu disse - assim seja". Despedimo-nos.

terça-feira, março 08, 2011

BEBUM SIM, DOIDO NÃO!

A pedidos, uma crônica sobre um fato virídico (sic) das noites recifenses: 

Num dos melhores filmes de Mel Brooks, “A História do Mundo”, ele nos conta, de maneira engraçadíssima, como “realmente” se deram vários “fatos” dos livros de história e religiosos. A cena de Moisés descendo o monte Sinai com os “QUINZE” Mandamentos, distribuídos em três pedras, é hilária. Enquanto descia, Moisés dá uma topada e deixa cair uma das pedras, que se quebra, com cinco mandamentos! Ele, sem perder a pose, continua a descida com as duas restantes e chama o povo para ensinar, agora, os dez mandamentos que Deus havia enviado. Rapaz, o quanto eu imaginava o que poderia ter naquela pedra que quebrou-se!

Mas a cena do filme que me remete ao texto de hoje é uma sobre o primeiro Crítico de Arte: vemos um homem vestido de peles, um Neandertal todo peludo e primitivo, entrar numa caverna cheia de pinturas rupestres. Ele para em frente a um grupo delas e fica a analisá-las demoradamente. Após algum tempo, ele bota a pitoca pra fora e dá uma bela duma mijada na parede! E assim, segundo Mr Brooks, nasceu o primeiro dos Críticos de Arte, fazendo o que eles sabem melhor: mijar impunemente no trabalho dos outros!

Numas destas noite no bar Burburinho, estava eu no palco com a agora finada banda de rock anárquico “Capitão Gancho”, todos nós preguiçosamente ensaiados, ligeiramente bêbados, tocando coisas dificílimas de Led Zeppelin e Deep Purple, sem rede de proteção, sem paraquedas reserva, sem plano B, enfim, na maior greia do mundo! Mas a farra e o bom humor não duraram muito...eis que de repente, surgiu, assim, do nada, ao que parece, um dos maiores especialistas em Rock de todos os tempos! Ele parou atrás do palco e ficou a analisar o suor sagrado do nosso trabalho, nossas execuções primorosas de clássicos eternos do Heavy Metal. O homem não demorou muito em dar o seu veredito...mas, antes, calma, que ele não botou nada pra fora pra nos molhar com um líquido amarelo e morno. Mas, naquela noite, pra mim ,foi pior!

Pra quem não conhece o Burburinho, é preciso antes dar uma explicação: atrás do palco, há uma tela, tipo uma grade do chão ao teto, que permite a circulação de ar e, principalmente, possibilita ao povão assistir da calçada, lá atrás, a todos os shows de graça. A calçada é reduto de um bando de doido que gosta de tomar vinho barato, entre outras substâncias mais desagradáveis e que gosta de ficar dando pitaco no repertório, pedindo Raul Seixas (toca RAUL!!!) ou Pink Floyd quando você quer tocar Creedence ou, às vezes,  endoidam quando tocamos o que querem, enfim, tem sempre uma azucrinação, de leve, nos ouvidos dos músicos que estão no palco querendo tocar o que ensaiaram para um público lá na frente, que pagou, e outro, atrás, que, revolucionariamente, quer um show privado e Free! Mas tudo bem, tudo isso faz parte da bagunça roqueira no burburinho... Mas, naquela noite, o tempo estava feio, meio chuvoso, e não tinha absolutamente ninguém na rua, até a chegada do nosso especialista musical citado acima...

Já dizia um grande amigo que “o homem quando se explica não se justifica”, mas queria deixar claro que a intenção aqui não é repudiar o trabalho dos críticos, só que , naquela noite, a guerra total foi declarada por eles de maneira muito violenta e aberta, sendo necessário rechaçar os ataques de maneira exemplar, atirando no que se movesse e sem fazer prisioneiros!!! Então, o que aconteceu foi que nosso crítico na grade ouviu, no máximo, duas músicas e constatou, ao final dos aplausos dos ignorantes, que pagaram para entrar, em bom e alto tom:

--Esta banda é uma meeeerrda!!!

Matamos no peito o comentário esclarecido e fomos para outra do Zepelin, intricadíssima, “Kashmir”, musiquinha cheia de pra que isso, de passagens rebuscadas, de retornos com pequenas variações imperceptíveis aos leigos, Miguel, nosso vocalista, com a barba ficando branca em agonia com uma letra interminável, com agudos fora do alcance humano, tudo isso que havia sido, durante quase uma hora inteira (!) de nossas vidas, exaustivamente ensaiado , em meio a várias tentativas e paradas pra tomar cerveja e conversar merda, realmente, um trabalho miserável! Ao final da música, a plateia veio abaixo com gritos de Bravo! Bravo! Era a glória e a colheita do fruto do nosso trabalho duro!

Mas...quando os aplausos pararam.... naquele milésimo de segundo em que procurávamos nossos copos, cigarros... o guitarrista, Leozinho, jogava fora sua palheta tornada imprestável a serviço dos deuses do Rock, Mário, o batera, escolhia novas baquetas mais inteiras para o próximo número...naquele silenciozinho de nada em que só ouvíamos a cerveja e o uísque caindo nos copos...vem lá de trás então aquela vozinha embargada e sarcástica, irônica...o discurso longamente esticado...o movimento da mão direita, que partia de um extremo ao outro do palco, abarcando tudo e todos:

--Esta banda não toca pooorrra neeeenhuuuummma!!!

Amigos, aquela crítica tão despachada e direta de alguém que eu nunca vi na vida me tirou o resto de juízo que ainda havia depois de quase uma garrafa de uísque. Eu calmamente tirei meu baixo dos ombros, coloquei-o no suporte e desci do palco com meus quase dois metros e 140 quilos para encarar o rapaz agarrado nas grades. Eu não tinha percebido o quanto ele estava bêbado, mas, de qualquer jeito, o diálogo foi bem singelo e franco. Eu fiquei com rosto bem colado ao dele e disse umas palavras bem cordiais:

--Meu amigo, se você abrir a boca de novo... você está vendo aquela porta ali?  Pois eu vou dar a volta e venho aqui quebrá-lo no pau e, pode ter certeza, você vai sofrer pra ca-ra-lho!

Claro que tudo era um blefe, muito mais com a intenção de se livrar de um chato do que qualquer outra coisa, mas o cara levou a sério. Ele deu dois passos pra trás e quase caiu da calçada. Partiu cambaleando, disparando um discurso revoltado e indignado:

--Que é isso!!! Violência não constrói, viu, violência não constrói! E saiu trôpego pela rua.

Retornei ao palco para encontrar os olhares assustados dos amigos, que nunca tinham me visto daquele jeito. Eu tirei por menos, dei uma risada, e continuamos o show sem maiores problemas. Mas a noite não havia acabado ainda.

Já no fim do show, acho que tocávamos “I heard through the grapevine”, versão Creedence, quando, para surpresa e preocupação de todos, o bêbado retorna mais bêbado ainda, totalmente estragado, praticamente caindo, se não se agarrasse na grade. Alguém chamou minha atenção, dizendo:

--Olha só quem voltou! Teu amigo!

Acabamos de tocar a música e o silêncio foi terrível e eterno... Você não ouvia absolutamente nada! Todos tinham os olhos voltados para o cara agarrado com dificuldade nas grades. Ele, com muita dificuldade, conseguiu se endireitar, apesar do balanço natural dos embriagados, com toda o embaraço causado pela cachaça no sangue e no cérebro...a mão direita começa a fazer aquele gesto que já tínhamos visto na noite, que abrangia, de uma ponta a outra, toda a extensão do palco...a voz sai embargada e trêmula, mas confiante no direito da livre expressão, da democracia, de saber que  vive num país livre onde você pode emitir suas opiniões sem medo de retaliação, de repressão, de tortura, custe o que custar:

--Eeeeesssa baaannnda...(pequena pausa para tomar ar) nãooo toooca pooorrra nenhuuuuma!

Silêncio mortal no palco e no bar. Todos se entreolham. É quando  vem o arremate genial do bêbado-crítico ou vice-versa, a pérola!

--Mas o baixista toca pra ca-raaa-lhooo!!!

Quase não conseguimos tocar mais de tanto rir da tirada do nosso algoz! Em mais de trinta anos de convívio com alcoólatras e bêbados de fim de semana, eu nunca ouvi tirada mais genial do que esta, e olhem que os bebuns geralmente se superam, mas me excluir da mijada foi manobra e jogo de cintura  que poucos políticos profissionais têm. Gênio! 

Logo depois, ao final da última música, alguém me chama a atenção:

--Dá uma olhada no cara que tu ias quebrar e fazer sofrer pra caralho.

Ali atrás, de frente para a rua, ou seja, física e simbolicamente de costas para nós, estava o bêbado , totalmente apagado, mas ainda de pé, de braços abertos, agarrado em pontos extremos da grade, o corpo em forma de cruz, um verdadeiro cristo crucificado pela minha incompreensão e intolerância...bêbado ele era, mas tinha muito juízo!