segunda-feira, maio 01, 2006

MISSÃO IMPOSSÍVEL (UMA METACRÔNICA)


(Dedicada a todos que sabem a dor e a delícia de encarar uma folha em branco)

Um bar num feriado de primeiro de Maio. Meio-dia. Movimento fraco ainda, com algumas famílias chegando para almoçar. Após três tentativas, finalmente consigo achar um lugar aberto. Estou com vontade de escrever algo para o blog. Saio do carro com duas folhas de papel. Tenho uma idéia sobre uma noite de blues no Recife. Não pressinto que estou diante de uma missão impossível.

A primeira cerveja já se foi, e eu olhando para o papel em branco. Peço a segunda, quando percebo que a primeira veio errada. O garçon tenta desculpar-se, mas não tem importância. Pelo menos ela estava gelada, tanto que nem percebi. Como se não bastasse a música Axé tocando baixinho no rádio, agora os maruins estão atacando minhas pernas alérgicas. E eu tentando escrever alguma coisa.

Já se foram dez linhas escritas numa das folhas, que acontecem de ser os versos de uma proposta da Caixa Econômica para a liberação do FGTS. Peço uma tripa de bode ao garçom, que me volta da cozinha cinco minutos depois para me comunicar que o cozinheiro não o tinha informado que não tinham tripa de bode. O cara já está se sentindo desconfortável, como quem está perdendo de 2X0 para uma cerveja errada e a miserável da tripa de bode. Agora ele tenta empatar com explicações e a vinda à minha mesa a cada 3 minutos para encher meu copo, e minha paciência.

Mais dez linhas no verso da proposta da CEF para a liberação do FGTS, e a inspiração parece que está chegando, agora que terminei a segunda cerveja, agora certa, e o segundo cigarro. Também consigo pedir, já confirmado duas vezes pelo garçom, e três pelo cozinheiro, duas linguiças de bode com farofa e vinagrete. Ufa! Que insistência com um bode, para quem saiu de casa para comer sushi, só pra encontrar um cadeado enorme trancando a porta!

Finalmente consigo passar para a segunda e última folha de papel. Esta um verso de uma lista de documentos da CEF...Fico também aliviado não só por ter conseguido escrever uma página inteira dizendo coisa nenhuma, provavelmente enchendo lingüiça.. de bode! Também estava com medo do garçon perceber, por uma curiosidade que já notei, que estou escrevendo sobre ele. O alívio foi em vão, pois exatamente quando escrevia a palavra garçon 3 linhas acima, o peste veio dar uma inspecionada no meu copo e, de tabela, no meu texto! Já penso em dobrar a página exatamente aqui, para então poder continuar, desta vez sem escrever a palavra garçom para não correr riscos. Justamente agora, ele traz as duas lingüiças de bode com farofa e vinagrete. Ponho discretamente a mão sobre o papel, mas ele já está desconfiado.

Traço a primeira lingüiça, que por sinal está uma delícia, e acendo meu terceiro cigarro. Continuo com a esperança de escrever sobre a noite de blues no Recife. Ôpa, o que vejo aqui, deixe-me ver: recebi um olhar de reprovação ao acender o cigarro. A gata está na mesa do lado com o namoradinho e parece que ela não gosta de Marlboros vermelhos, deve ser isso. Engraçado que eu cheguei primeiro, num bar aberto, e me dirigi para a mesa bem do canto, praticamente na calçada, só para ficar na minha e tentar escrever meu texto sobre a noite de blues no Recife. Mas agora estou sendo marcado implacavelmente por uma música Axé tocando bem baixinho no rádio, uma esquadra de mosquitos atacando minhas pernas alérgicas, um garçon curioso e agora essa gatinha não fumante! Mas logo hoje, meu amor, que venho lendo Nietzche e não tou afim de ser legal com ningúem? Estou cheio de estórias de super-homem, de quebra de éticas judaico-cristãs, moral escrava e sobrevivência do mais forte! É ruim, hein? Fumo tranquilamente meu terceiro Marlboro, enquanto a fumaça caminha sacanamente em direção ao narizinho sensível ao meu lado.

Consigo escrever minha primeira linha sobre a noite de blues no Recife: “São 6 da noite, e acordo suado. O quarto está escuro e apenas ouço o barulho do ventilador, que gira de um lado para o outro, soprando o ar quente das noites de Recife...”  Mas espera aí! O que foi agora? Um menino maltrapilho estaciona a bicicleta bem do meu lado. Ele deve ter uns 10 anos e parece ter vindo praticar mendicância no bar, a começar por mim, que já estava começando promissoramente meu texto sobre a noite de blues no Recife e que já andava açoitado por uma música Axé tocada bem baixinho no rádio que vem da cozinha, uma esquadra de uns 30 maruins, em formação, atacando minhas perninhas alérgicas, um garçom solícito e curioso, e uma gatinha sensível aos meus Marlboros vermelhos. Agora chega esse pirralho, que já começou o marketing com um casal que estava atrás de mim. Ele conta uma estória de que é o aniversário dele hoje e que estava indo para casa na favela da Rodinha, quando teve um mau pressentimento com relação a dois garotos que estavam numa bicicleta. Quando olho para a rua, os citados meninos passam e minha antena de maloqueiro da praia do Pina capta a mensagem. Eles nem olham, mas o pressentimento do menino bateu com o meu. Me viro pra ele e confirmo sem dó que ele vai ser assaltado e que fique por perto. “Olhe, é simples”, eu falo, “eles são grandes e você pequeno. Eles estão numa bicicleta só e você tem uma que não é nada mal. Que é que você acha?” Fico ali contemplando a cara do garoto enquanto ele pesa as chances.

Nesse meio tempo o casal com a gatinha do nariz sensível ao meu Marlboro vermelho resolve ir embora. Eles ainda me propiciam uma cena pra esse texto, que deveria ser sobre uma noite de blues no Recife, mas que no fim não vai dar em nada mesmo. Essa é uma cena que sempre tocou meu coração, singela, e que sempre quis escrever a respeito. É uma cena muito comum com casais jovens de classe média alta e que acontece quando a conta vem: o cara entrega o talão de cheques para a namorada preencher. Só isso. Eu nunca soube bem o que isso significa, e tenho vontade de perguntar, já no topo de minha quarta cerveja, mas depois me lembrei da cara dela quando acendi meu terceiro Marlboro vermelho e achei que não era uma boa idéia. E, afinal, quem escreve deve sempre procurar interpretar a situação em vez de ir atrás de fatos. Nem jornalista, que eu saiba. Pois é, acho que essa cena é um sinal de compromisso, de unção, como um rei que coloca o cetro ou espada no ombro do cavaleiro. Talvez um sinal pré-anel de noivado? Não sei. Talvez um sinal de que em breve tudo dele será dela também? Ou seria tipo: eu posso sair com muitas, mas só você preenche meu cheque? Acho que tenho que pensar mais sobre isso. Fico a observar as mãozinhas com unhas bem cuidadas, obviamente sem manchas de cigarro, preencher orgulhosamente o cheque, que ela retorna ao namorado para que seja assinado.

Passam-se 10 minutos e, confirmando o pressentimento, um dos garotos, o maior, volta andando até a esquina da rua onde eles tinham entrado. Que saco! Logo hoje que venho lendo Nietzche e toda aquela estória de super-homem, a quebra da ética judáico-cristã, moral escrava e, como bom Darwiniano, a sobrevivência do mais forte, de elevar a moral e ética dos senhores e não da plebe etc etc e lá vai esse ex-cristão velho tomar partido do pirralho, de graça.

Me levanto pra ir ao banheiro e desvio, sem avisar, em direção ao meio da rua. Chamo o grandote, que espreitava junto a uma árvore. Ele corre feito um louco até uma esquina a uns 200m onde o outro esperava. Chamo o pequeno que estava no bar, que me explica que a casa dele fica perto e que ele consegue chegar, mesmo que eles venham atrás daquela distância. “Então vai logo”, despachei o miserável. Fiquei marcando os dois malocas na esquina, enquanto o pequeno voava na outra direção. E assim acabou minha boa ação e a vontade de escrever sobre uma noite de blues no Recife, que já tinha começado promissoramente, mas que ainda levou uma pá de cal quando retornei à mesa e recebi um telefonema da mulher, que precisava do carro para resolver alguma problema. Missão impossível e abortada.

Chego em casa e minha filha pula de alegria no meu colo. Faço ela prometer nunca andar de bicicleta num primeiro de maio deserto. Ela sorri e diz sim, acho, com as únicas palavras que ela sabe: “papai” e "o au au"!