segunda-feira, abril 04, 2011

VASECTOMIA EM TRÊS ATOS

Eu: sala fria essa da espera e esse povo que não me chama. Já não aguento mais de sono. Mas quem foi que inventou mesmo esse negócio de cortar o pinto, eu ou a mulher? Também quem mandou começar a produção tão tarde. Agora tou sem saco, sem sacanagem, de criar mais menino. E aquele negócio de criar filho como se fosse neto não é muito divertido: “é seu avô, é, filho?” não tem graça...o cara querendo se aposentar e o pimpolho ainda nas crises de adolescência...tou fora. O pai com setenta anos e o menino preocupado com o vestibular, chorando a primeira namorada... Não, vamo parar por aqui. Mas precisava vir em jejum? Tou com mais fome do que preocupação. Preocupação com o quê, mesmo? Dizem que homem corre de uma vasecto como um Bebum corre do AA, mas o pior é o mico de sair mostrando a pitoca amedrontada às enfermeiras calejadas, assim, tudo tão sem clima!

Enfermeira : o senhor pode vir por aqui?

Eu: fui falar...

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Eu: humm, deixa eu me ver no espelho...mas como eu tou lindo com esta bata que é dez números abaixo do meu e a bunda de fora! Também quem mandou ser grande e gordo. Aqui não é lugar pra desfile de beleza, meu filho, muito pelo contrário!

Enfermeiro: o senhor pode deitar nesta maca que vamos dar um passeio.

Eu: passeio, é? espero que não seja pra o IML.! Mas que visão interessante esta! Que perspectiva nova da vida, rapaz! Daqui da maca é tudo lâmpada e teto, lâmpada e teto, lâmpada e teto...Então é assim quando estamos pra empacotar, humm, negócio estranho, mas não deixa de ser curioso...Bump! Observa os quebra-molas, ô motorista de maca! Cê tirou carteira onde, no INSS? FDP!

Enfermeiro: pronto chegamos, senhor, rapidinho.

Eu: rapidinho...tu quase me derruba ali na curva! Humm, deixa eu ver... Putz, tem logo quatro enfermeiras pra assistir a este espetáculo, que excitante, pra não dizer o contrário!

Anestesista: pois é, como eu ia dizendo, as escalas estão uma merda. Trabalhei o fim de semana passado todo e já vou trabalhar de novo!

Enfermeira: é doutora, mas tá assim mesmo,tá difícil.

Eu: vocês tão reclamando de quê, hem? Por que não foram arranjar outra profissão? Vão dizer que não sabiam que medicina é regime de escravidão!

Enfermeira: Mal dá pra descansar. Acaba gerando acidentes...

Eu: espero que hoje, ESPECIALMENTE, de coração, vocês tenham descansado, que eu não tenho nada a ver com seus problemas trabalhistas. Já é bem duro vir aqui ser cortado e atrapalhar a rotina de vocês!

Anestesista: vou dar ao senhor uma medicação para dormir e depois as meninas vão fazer a assepsia do local.

Eu: Ótimo que eu durma, pra não ver esta tragédia!

Cirurgião: tá tudo tranquilo aí?

Eu: tá. Tirando a fome. Olha, vê se não erra a mão lá embaixo!

Médico: fica tranquilo que qualquer merda você vai ser o primeiro a saber.

Eu: humm...não gosto de médico com senso de humor, muito menos com meu pinto no meio da piada...que soninho bom...eu devia ter um tubo desse oxigênio em casa, delícia...

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Anestesista: pronto, senhor, tudo correu bem e agora vamos de volta pra maca e para a sala de recuperação.

Eu: tudo bem agora... Eu quero ver quando passar a sua anestesia!

Enfermeiro: vamos lá , senhor, de volta para a outra sala?

Eu: tudo bem, mas vê se vai sem pressa agora, ô desgraçado! E tome lâmpada e teto, lâmpada e teto, lâmpada... teto...

Enfermeiro: pronto. O senhor ficará aqui repousando. Fique tranquilo que estamos tomando conta do senhor.

Eu: sei...

Médica 1: hoje levei um esporro da chefe porque cheguei atrasada.

Médica 2: Ela é durona.

Médica 1: Eu hemm! Não quero nem saber. A reforma do apartamento está a todo vapor e a empregada não sabe das coisas, cê entende, né...eu tinha que ficar pra receber a mesa nova, a coisa mais linda.

Eu: se eu fosse teu chefe, tu já tava na rua...

Moribundo 1: Aaaiiiiii!!!

Médica 1: o senhor tá sentindo dor?

Eu: não, deve ser o prazer de estar aqui, doutora!

Médica 1: qualquer coisa estamos atentas aqui, viu?

Eu: atenta ao quê? A chegada do guarda-roupas novo?

Médica 2: cê já viu as minhas fotos de Bariloche?

Médica 1: Uau, mas você está liiiiinda com esta roupa de neve!

Médica 2: ah tu sabes que é tudo alugada, né? O problema às vezes era com os pés, que ficavam meio úmidos...

Médica 1: ah, menina, eu vou te ensinar um macete, que é colocar uma meia, depois um saco plástico e depois outra meia. O pé fica sequinho!

Moribundo 2: ahhhhh!!!

Médica 2: Mas eu não sabia desse macete, que merda! Diga, senhora, tá sentindo alguma coisa? A senhora é branquinha assim mesmo?

Eu: essa criatura deve tá é morrendo!

Médica 1: a senhora é linda!

Eu: falsa!!!

Médica 1: e o senhor, está se sentindo bem?

Eu: Eu?? melhor quando sair daqui.

Médica 1: daqui a pouco te libero, não tem pressa.

Eu: promessa é dívida, viu? Mas continua com aqueles macetes das meias, eu tava adorando!!! E aqueles hotéis na beira dos lagos, não têm ar condicionado, mesmo? Só sei dormir com aquele barulho, nem que seja no polo Norte!

Cirurgião: e aí, tá novo? Alguma dúvida?

Eu: só três perguntinhas: quando saio daqui, sexo e cerveja, por favor?

Cirurgião: se quiser já pode ir, sexo...humm... vamos ver, cerveja no fim de semana...

Eu: humm, hoje é quinta, então cerveja amanhã! Beleza de Creuza!!!

Cirurgião: Bem....

Eu: Táxi! Quer dizer, Maca!

Enfermeiro: Senhor?

Eu: me leve para onde estão minha roupas, si vous plaît!

Enfermeiro: Ahnn?

Eu: Lâmpada e teto, lâmpada e teto, lâmpada e teto...que saco....por falar em saco, melhor comprar um de gelo para o meu...

quarta-feira, março 16, 2011

Uma Lágrima (a um amigo)

Hoje é um daqueles dias de lembranças e reflexões: oito de março, data de aniversário de um velho amigo que partiu. Como ele gostava de dizer: dia internacional da Mulher: "sou o presente de Deus a todas elas!"  Assim como gostava o poeta Vinicius, nossa amizade foi totalmente realizada em torno de mesas de bar. Éramos diferentes em muitos aspectos, mas sempre achávamos pontos de contato para conversar e viver a vida. Por alguns anos fomos inseparáveis. Tínhamos dois apelidos para a dupla. Na fartura, “Johnnie e Walker”. Na pobreza, “Pi e Tu”, uma aguardente pernambucana...

Ah agora até lembrei-me de uma vez que nos encontramos e não bebemos: meu casamento. E ele era o padrinho! Meu casamento foi relâmpago: cinco meses de namoro. Amigos inconformados, “cê tá louco?” diziam uns, outros disseram que não iriam testemunhar aquele suicídio. Fiquei espantado com a reação. Numa noite, cheguei pra ele e contei do escândalo que estavam fazendo. Ele tranquilamente falou: “eles não sabem de nada, siga seu coração”. E ali mesmo achei meu padrinho. 

Para a cerimônia na igreja, os velhos amigos ainda ficaram surpresos com a ausência da birita. Pediram intervenção do super padrinho, das autoridades eclesiásticas, da noiva, sem sucesso: normas da igreja, ponto final. Um outro colega, astutamente, chegou bêbado – o casamento era às nove da matina! - mas com uma justificativa convincente: “já que não permitem que bebamos aqui, eu trouxe a cachaça 'nim mim' ”! Menino inteligente aquele! Mas no grande dia, apesar da lei seca, o padrinho só fazia rir orgulhoso do “cargo”. Ele levou tão a sério a “nomeação” que até fez uma vaquinha – uma extorsão, reclamaram! – com os colegas do trabalho e me conseguiu dez dias numa pousada em Porto de Galinhas! Lua-de- mel de luxo!

Flashbacks e Tiradas: dirigindo no caminho para a praia de Tamandaré. No banco traseiro, uma caixa cheia de cervejas geladas. No rádio, alguma música boa, bate-papo bom. Eu dirigia a sessenta por hora, no máximo. Comento: “parece que o mundo todo está nos ultrapassando”. “E daí?” , ele responde, “ pra que pressa, se o que vamos fazer lá já estamos fazendo aqui mesmo?”. Corretíssimo em tese, noves fora beber dirigindo! 

Hinos para todas as ocasiões: “Sentimental eu Fico” de Renato Teixeira: “sentimental eu fico quando pouso na mesa de um bar eu sou...um lobo cansado, carente de cerveja...e de velhos amigos...”. “O Negócio é Amar” de Dolores: “tem gente que jura que não volta mais, mas jura sabendo que não é capaz...”. E a preferida, de Toquinho, “Aquarela”: “numa folha qualquer eu desenho um navio de partida/com alguns bons amigos bebendo de bem com vida...”.

Paixão comum: o Santa Cruz FC. Íamos aos jogos juntos, mas eu assistia sem a companhia dele. Explico: quem vai a campo desses times de povão sabe das manias de torcedor supersticioso. Nós tínhamos até uma em comum: quando havia na escalação do outro time algum nome escalafobético, tipo “Estaleta”, “Boquinha”, “Cachacinha” etc, tínhamos certeza de que iríamos perder com um gol deles. Era Batata! Outros rezam agarrados com um terço na hora dos escanteios contra. Outros dão as costas para o campo em faltas perigosas. Mas a mania do meu amigo era ir até o degrau mais alto da geral e ficar zanzando de um lado pro outro, o jogo todo, praticamente de um gol a outro, lamuriando algum mantra. Eu não tinha paciência nenhuma para aquilo!

Mas, pensando bem, era melhor ele ficar longe mesmo. Numa das poucas vezes em que se aquietou, final de campeonato, campo lotado, nós dois, que fôramos goleiros na escola, comentamos que o cara tinha deixado o gol muito aberto no lado esquerdo, numa falta do meio da rua. Zagueirão nosso corre meio quilômetro pra bater e Boooomm: bala de canhão voa por cima da barreira e vai lá no ângulo desguarnecido estufando as redes. Gol e campeonato. Estádio vem abaixo e eu junto com o infeliz de 140 quilos pendurado no meu pescoço! Caímos feio. Ele torceu o joelho de ficar inchado. Eu todo arranhado.

Causos verídicos: passamos anos repetindo o pedido em todos os bares, na esperança da mesma réplica e tréplica, mas em vão. Foi assim: chegamos numa barraca no fim do mundo, embaixo de um viaduto. Calor miserável. Sentamos com toda a empáfia e esperamos a mulher gorda vir nos atender com toda aquela má vontade: “senhora, queremos uma cerveja Antártica do casco escuro e estupidamente gelada”. A mulher nos olhou com desprezo e disparou: “olhe, só tem Kaiser, do casco claro e tá meio quente.” Nós dois humilhados, nem um bar num raio de quilômetros, com medo de que a mulher nem servisse mais nada, imploramos em uníssono: “traga duas, pelo amor de Deus!!!” Mas em seguida a mulher amenizou, vendo a nossa falta de noção do lugar, quando perguntamos por tira-gosto: “meu filho, não trabalhamos com isso, mas, se o senhor quiser, eu mando meu filho pegar umas seriguelas lá no quintal”...Aceitamos encarecidamente!

Fundação do GSBB: tradução : “Grupo de Salvamento e Busca ao Bêbado”. Tudo começou na noite anterior. Compramos uma garrafa de uísque para assistir a uma reapresentação de “Quincas Berro D'água”, de Jorge Amado, com o genial Paulo Gracindo. Conto emblemático para os boêmios. A estória na série todos conhecem, Quincas vai a um bar e pede uma cachaça. Servem, de sacanagem, água pura, e o resultado inusitado é que Quincas morre fulminantemente! No filme, parece que os amigos não percebem que Quincas morreu e saem arrastando o defunto pelas farras costumeiras. A cara de felicidade do morto que Gracindo faz é uma obra prima!

Terminado o filme, nossa garrafa já vazia, levantei-me e disse que seria inaceitável ir pra casa e que iria tomar alguma saideira alhures. Meu companheiro levantou-se indignado perguntando se eu pensava em ir sozinho. Resultado: saímos batendo e fechando todos os bares numa segunda-feira à noite, até que o deixei em casa, imprestável, às 3 da manhã. Não sei como, ainda encontrei companhia e bar aberto no caminho pra casa... Cheguei em casa às 10 da manhã. Tinha que trabalhar às 12...

Acordo com a cigarra do apartamento, onde morava só. Abro a porta e está lá o companheiro inseparável perguntando se tudo estava bem. “que horas são”, pergunto, “2 da tarde”, ele responde sorrindo, e completou: “quando vi o carro lá fora, fiquei mais tranquilo”. Ainda me aceitaram no trabalho, mas fiquei mais cuidadoso com os horários depois desse resgate...

Falando em resgates, outros foram necessários, mas parece que o GSBB estava fadado ao fracasso, por falta de cooperação dos bêbados. Quando ainda solteiros e sem filhos, num dos poucos momentos de sanidade em meio às bebedeiras, eu larguei um pressentimento na mesa , entre um copo e outro: “na pisada que vamos, acho que nosso fim não é muito promissor, meu velho”. Choramos. Mas passou. Arranjamos casa, esposas e filhas. Fui morar em outro país. Ele foi para outro estado. Parecia que a vida estava entrando nos eixos e de uma maneira mais sóbria. Ledo engano.

Volto depois de alguns anos e já começaram a me trazer más notícias. Teu amigo vai mal, não consegue parar. Vai perder emprego. Família. Drama. Faço contato. Ele nega tudo. “Exageram”, “Não tem problema nenhum”. Amigos viajam pra conversar com ele e aconselhá-lo. Tentativas de resgate... Nada. Tudo em vão. No final das contas, ele estava indo pelo precipício, de fato, e arrastando todos que o amavam. Foi uma agonia, ainda, de quatro ou cinco anos, mas quando a morte veio, parece ter sido mais um descanso do que uma derrota.

Antes do fim, tivemos ainda dois encontros que nunca imagináramos nem nos piores pesadelos: naquela noite estávamos ali, surrealmente, no mesmo bar, na mesma mesa, mas não estávamos, teoricamente, bebendo juntos! As coisas estavam totalmente fora de controle e eu já havia recusado vários encontros que fossem em bares ou com bebida. Mas naquela noite ele chegou de surpresa. Sentou-se. O garçom trouxe um copo. Ele pediu que eu colocasse a cerveja no copo. Neguei. Ele soltou um risinho amargo, chamou o garçom de volta e pediu uma cerveja só para ele. 

Logo após, começamos uma troca amarga de acusações e de queixas por aquela situação. Por um lado, ele dizia que eu não tinha autoridade moral para reprová-lo. Por outro, eu atirava de volta que ele tinha perdido tudo por causa da merda de uma cachaça. Tento trazer alguma razão de volta, chantageio, falo dos filhos, do futuro, de que ainda tem jeito, de que eu ainda quero ir a um churrasco na casa dele, pra tomar alguns daqueles sucos de tomate com decoração afrescalhada! Nada. Ele continuava, irritantemente, virando um copo atrás do outro. Foi nossa única briga em vinte anos. Antes de sairmos, ainda amenizamos o tom e nos despedimos. Ele provavelmente foi a outro bar, embora tivesse prometido que iria para casa. Perdi as esperanças. Fiquei à espera de um telefonema fatídico.

Um ano depois, recebo um aviso: “se você ainda quer vê-lo, apresse-se”. Ele estava internado há mais de 40 dias. Quadro avançado de cirrose. Convulsões. Toda aquela merda de fim de jogo. Chego tremendo no hall do hospital. Pai chora num canto. Um amigo no outro. Tomo coragem e entro  naquele quarto de hospital. Ele põe a mão para protejer os olhos, não reconhece de primeira. De repente tenta abrir um sorriso. Beijo-o e sento ao lado da cama. Ficamos de mãos dadas um bom tempo. Conversamos sem amargura. Relembramos todas as estórias contadas acima e tantas outras. Demos algumas risadas. Falamos do filhos, do time do coração, das viagens juntos, de uma frágil esperança de futuro. Tudo como nos bons tempos. Ou quase tudo.

Ficamos ali por quase uma hora. Eu com aquela sensação terrível de saudade, de falta de um futuro que não iria haver. Fiquei também com a impressão incômoda de que ele teria feito melhor por mim do que eu fiz por ele, mas já era tarde para remorsos. A conta já estava fechada e, como sempre, com direito a saideira. Antes de ir, fiquei aos pés dele enquanto a enfermeira vinha dar os remédios da noite. Peguei o telefone do quarto para ligar depois, voltar outro dia...Desci e fui fumar um cigarro na lanchonete na frente do hospital. Um misto de tristeza e de saudade.

Dois dias depois: coma. Mais uns dias e estou distante num chalé na serra em Gravatá PE. Recebo o  telefonema inevitável. Ouço o comunicado com uma frieza estranha. Era um fim de tarde na serra. Temperatura agradável. Cigarras cantando forte. Sento-me numa cadeira do terraço. Acendo um cigarro. Um turbilhão de lembranças boas vem surgindo. O fim desatroso quase não aparece, embora alguns “por quês” surjam aqui e acolá. Quando vou ali pela metade do cigarro, ouço aquela voz inconfundível, que ele fazia quando estava manhoso: “poxa, mas nem uma lágrima?” Chorei sem freios.

Dias depois, comentei com minha amiga, comadre e mãe da filha dele: “caramba, fiquei numa sinuca de bico no dia em que ele partiu". "Por quê?" "Não sabia se tomava uma em homenagem ou se ficava no seco em protesto..." "Se nós conhecíamos bem nosso amigo, se você ficasse no seco, ele teria ficado muito chateado com você".  "Então fiz bem em entornar aquele vinho chileno..." "Não tenha dúvida". "Então Amém - eu disse - assim seja". Despedimo-nos.

terça-feira, março 08, 2011

BEBUM SIM, DOIDO NÃO!

A pedidos, uma crônica sobre um fato virídico (sic) das noites recifenses: 

Num dos melhores filmes de Mel Brooks, “A História do Mundo”, ele nos conta, de maneira engraçadíssima, como “realmente” se deram vários “fatos” dos livros de história e religiosos. A cena de Moisés descendo o monte Sinai com os “QUINZE” Mandamentos, distribuídos em três pedras, é hilária. Enquanto descia, Moisés dá uma topada e deixa cair uma das pedras, que se quebra, com cinco mandamentos! Ele, sem perder a pose, continua a descida com as duas restantes e chama o povo para ensinar, agora, os dez mandamentos que Deus havia enviado. Rapaz, o quanto eu imaginava o que poderia ter naquela pedra que quebrou-se!

Mas a cena do filme que me remete ao texto de hoje é uma sobre o primeiro Crítico de Arte: vemos um homem vestido de peles, um Neandertal todo peludo e primitivo, entrar numa caverna cheia de pinturas rupestres. Ele para em frente a um grupo delas e fica a analisá-las demoradamente. Após algum tempo, ele bota a pitoca pra fora e dá uma bela duma mijada na parede! E assim, segundo Mr Brooks, nasceu o primeiro dos Críticos de Arte, fazendo o que eles sabem melhor: mijar impunemente no trabalho dos outros!

Numas destas noite no bar Burburinho, estava eu no palco com a agora finada banda de rock anárquico “Capitão Gancho”, todos nós preguiçosamente ensaiados, ligeiramente bêbados, tocando coisas dificílimas de Led Zeppelin e Deep Purple, sem rede de proteção, sem paraquedas reserva, sem plano B, enfim, na maior greia do mundo! Mas a farra e o bom humor não duraram muito...eis que de repente, surgiu, assim, do nada, ao que parece, um dos maiores especialistas em Rock de todos os tempos! Ele parou atrás do palco e ficou a analisar o suor sagrado do nosso trabalho, nossas execuções primorosas de clássicos eternos do Heavy Metal. O homem não demorou muito em dar o seu veredito...mas, antes, calma, que ele não botou nada pra fora pra nos molhar com um líquido amarelo e morno. Mas, naquela noite, pra mim ,foi pior!

Pra quem não conhece o Burburinho, é preciso antes dar uma explicação: atrás do palco, há uma tela, tipo uma grade do chão ao teto, que permite a circulação de ar e, principalmente, possibilita ao povão assistir da calçada, lá atrás, a todos os shows de graça. A calçada é reduto de um bando de doido que gosta de tomar vinho barato, entre outras substâncias mais desagradáveis e que gosta de ficar dando pitaco no repertório, pedindo Raul Seixas (toca RAUL!!!) ou Pink Floyd quando você quer tocar Creedence ou, às vezes,  endoidam quando tocamos o que querem, enfim, tem sempre uma azucrinação, de leve, nos ouvidos dos músicos que estão no palco querendo tocar o que ensaiaram para um público lá na frente, que pagou, e outro, atrás, que, revolucionariamente, quer um show privado e Free! Mas tudo bem, tudo isso faz parte da bagunça roqueira no burburinho... Mas, naquela noite, o tempo estava feio, meio chuvoso, e não tinha absolutamente ninguém na rua, até a chegada do nosso especialista musical citado acima...

Já dizia um grande amigo que “o homem quando se explica não se justifica”, mas queria deixar claro que a intenção aqui não é repudiar o trabalho dos críticos, só que , naquela noite, a guerra total foi declarada por eles de maneira muito violenta e aberta, sendo necessário rechaçar os ataques de maneira exemplar, atirando no que se movesse e sem fazer prisioneiros!!! Então, o que aconteceu foi que nosso crítico na grade ouviu, no máximo, duas músicas e constatou, ao final dos aplausos dos ignorantes, que pagaram para entrar, em bom e alto tom:

--Esta banda é uma meeeerrda!!!

Matamos no peito o comentário esclarecido e fomos para outra do Zepelin, intricadíssima, “Kashmir”, musiquinha cheia de pra que isso, de passagens rebuscadas, de retornos com pequenas variações imperceptíveis aos leigos, Miguel, nosso vocalista, com a barba ficando branca em agonia com uma letra interminável, com agudos fora do alcance humano, tudo isso que havia sido, durante quase uma hora inteira (!) de nossas vidas, exaustivamente ensaiado , em meio a várias tentativas e paradas pra tomar cerveja e conversar merda, realmente, um trabalho miserável! Ao final da música, a plateia veio abaixo com gritos de Bravo! Bravo! Era a glória e a colheita do fruto do nosso trabalho duro!

Mas...quando os aplausos pararam.... naquele milésimo de segundo em que procurávamos nossos copos, cigarros... o guitarrista, Leozinho, jogava fora sua palheta tornada imprestável a serviço dos deuses do Rock, Mário, o batera, escolhia novas baquetas mais inteiras para o próximo número...naquele silenciozinho de nada em que só ouvíamos a cerveja e o uísque caindo nos copos...vem lá de trás então aquela vozinha embargada e sarcástica, irônica...o discurso longamente esticado...o movimento da mão direita, que partia de um extremo ao outro do palco, abarcando tudo e todos:

--Esta banda não toca pooorrra neeeenhuuuummma!!!

Amigos, aquela crítica tão despachada e direta de alguém que eu nunca vi na vida me tirou o resto de juízo que ainda havia depois de quase uma garrafa de uísque. Eu calmamente tirei meu baixo dos ombros, coloquei-o no suporte e desci do palco com meus quase dois metros e 140 quilos para encarar o rapaz agarrado nas grades. Eu não tinha percebido o quanto ele estava bêbado, mas, de qualquer jeito, o diálogo foi bem singelo e franco. Eu fiquei com rosto bem colado ao dele e disse umas palavras bem cordiais:

--Meu amigo, se você abrir a boca de novo... você está vendo aquela porta ali?  Pois eu vou dar a volta e venho aqui quebrá-lo no pau e, pode ter certeza, você vai sofrer pra ca-ra-lho!

Claro que tudo era um blefe, muito mais com a intenção de se livrar de um chato do que qualquer outra coisa, mas o cara levou a sério. Ele deu dois passos pra trás e quase caiu da calçada. Partiu cambaleando, disparando um discurso revoltado e indignado:

--Que é isso!!! Violência não constrói, viu, violência não constrói! E saiu trôpego pela rua.

Retornei ao palco para encontrar os olhares assustados dos amigos, que nunca tinham me visto daquele jeito. Eu tirei por menos, dei uma risada, e continuamos o show sem maiores problemas. Mas a noite não havia acabado ainda.

Já no fim do show, acho que tocávamos “I heard through the grapevine”, versão Creedence, quando, para surpresa e preocupação de todos, o bêbado retorna mais bêbado ainda, totalmente estragado, praticamente caindo, se não se agarrasse na grade. Alguém chamou minha atenção, dizendo:

--Olha só quem voltou! Teu amigo!

Acabamos de tocar a música e o silêncio foi terrível e eterno... Você não ouvia absolutamente nada! Todos tinham os olhos voltados para o cara agarrado com dificuldade nas grades. Ele, com muita dificuldade, conseguiu se endireitar, apesar do balanço natural dos embriagados, com toda o embaraço causado pela cachaça no sangue e no cérebro...a mão direita começa a fazer aquele gesto que já tínhamos visto na noite, que abrangia, de uma ponta a outra, toda a extensão do palco...a voz sai embargada e trêmula, mas confiante no direito da livre expressão, da democracia, de saber que  vive num país livre onde você pode emitir suas opiniões sem medo de retaliação, de repressão, de tortura, custe o que custar:

--Eeeeesssa baaannnda...(pequena pausa para tomar ar) nãooo toooca pooorrra nenhuuuuma!

Silêncio mortal no palco e no bar. Todos se entreolham. É quando  vem o arremate genial do bêbado-crítico ou vice-versa, a pérola!

--Mas o baixista toca pra ca-raaa-lhooo!!!

Quase não conseguimos tocar mais de tanto rir da tirada do nosso algoz! Em mais de trinta anos de convívio com alcoólatras e bêbados de fim de semana, eu nunca ouvi tirada mais genial do que esta, e olhem que os bebuns geralmente se superam, mas me excluir da mijada foi manobra e jogo de cintura  que poucos políticos profissionais têm. Gênio! 

Logo depois, ao final da última música, alguém me chama a atenção:

--Dá uma olhada no cara que tu ias quebrar e fazer sofrer pra caralho.

Ali atrás, de frente para a rua, ou seja, física e simbolicamente de costas para nós, estava o bêbado , totalmente apagado, mas ainda de pé, de braços abertos, agarrado em pontos extremos da grade, o corpo em forma de cruz, um verdadeiro cristo crucificado pela minha incompreensão e intolerância...bêbado ele era, mas tinha muito juízo!








quarta-feira, novembro 12, 2008

A ONDA GIGANTE


Meu velho amigo, bom dia. São 10 horas da manhã aqui em Recife. Faltam poucos minutos para a chegada da onda gigante mandada pelo Atlântico. Diferentemente do dissimulado Tsunami, essa vem cheia de pompa e espuma! Ela não vem de surpresa, como no começo do século, afogando turistas incautos. Essa, você sabe, já vem sendo anunciada há dias pelos jornais. Mas o que ninguém sabe é que, um pouco antes dos sismólogos preverem esse monstro, eu já havia sido avisado...eu não queria partir sem lhe contar esta história incrível.

Fico um pouco temeroso de que você me tenha por louco ou senil, afinal você bem sabe o quanto estes 80 anos de idade pesam em mim. Mas, por favor, não pense que eu endoidei de vez, eu lhe peço. Eu preciso que você acredite em mim, pois ainda necessito que você me faça um último favor, coisa muito simples. Amanhã você receberá em sua casa um grande pacote. Seguem agora as instruções sobre o que você tem de fazer, como também mais alguns detalhes de como tudo aconteceu.

Antes disso, saiba que a cidade do Recife foi evacuada. Todos fugiram como loucos. Quer dizer, quase todos...neste momento, estou escrevendo de um cortiço aqui na praia do Pina. Você ainda deve se lembrar dele, não, aquele em cima da antiga Soparia, em frente ao centenário bar "Pra Vocês"? Incrível como eles resistiram a todos esses anos! Se eles tiverem que cair hoje, isso não se dará por mãos humanas, eu lhe garanto. Eu sempre disse que voltaria a essa praia , mas não sabia que seria nessas circustâncias. Mas que diferença faz a essa altura? Não, não fique triste. Afinal, como é que dizia aquele velho ditado? Que já estamos “fazendo hora extra" na terra há um bom tempo? O que eu preciso, mesmo, é que você leia este e-mail e depois faça como eu lhe recomendei.

Eu necessito que você distribua umas centenas de livros que vão chegar a sua casa: é um livro que eu editei e mandei imprimir. São histórias de fantasmas! Eu sei que você pensará: “do que diabos esse velho louco está falando”, mas tenha um pouco de paciência comigo. O caso é que fui intimado por um fantasma a cumprir uma antiga promessa! Sim, um fantasma andou me aterrorizando desde que cheguei aqui há duas semanas! Logo eu, esse velho cético, tendo visões, ouvindo coisas, acordando no meio da noite assustado. Eu tinha que cumprir essa promessa nem que fosse - e de certa forma será - a última coisa que eu fizesse na vida. Tudo se passou mais ou menos assim:

“Tudo começa quando me mudo para cá. Na primeira noite, Às quatro da madrugada, acordo sobressaltado com um ruído de água fervendo. Não, meu amigo, você não pode imaginar o meu terror. O cheiro de café é intenso e incensa todo o apartamento. Com toda a dificuldade dos meus 150 kilos, consigo me levantar e me arrastar até a cozinha. Para minha surpresa, a luz está acesa... ao chegar na moldura da porta, meu coração pára. Todos os cabelos do meu pescoço se eriçam ao me deparar com um homem de idade, gordo, uma aparência cansada, cabelos bem brancos e desgrenhados... na frente do fogão está nada menos do que meu finado pai, tranquilamente coando café! O fogão tem duas bocas acesas, e o velho esquenta a água numa panela enquanto mantém o café fervendo na outra. Ao terminar de coar, ele despeja na garrafa térmica e desaparece! Fico alguns minutos congelado de terror. Meu corpo simplesmente trava. Fico com medo de me mexer e ver mais alguma coisa.

Após algum tempo, finalmente consigo me mover e voltar para meu quarto. Acendo a luz e escancaro a janela. Fico implorando pela chegada da manhã. “Mas não é possível” - penso - “depois de velho, começar a ter alucinações”! Nem nos meus piores porres, acredite, eu vi algo tão real, assustador.

Enfim, a manhã chega e eu começo a achar que foi apenas um pesadelo acordado. “No mínimo” - falo comigo mesmo - “é aquele uísque barato que ando tomando em casa sozinho”. Volto para a cama e durmo mais um pouco. Ao acordar, a primeira coisa que faço é ir a cozinha e, para meu desespero, a garrafa e as panelas continuam lá na mesma posição que meu "pai" as deixou.

No dia seguinte, saí para minha maratona de médicos e exames. Eu sabia que um dia todos aqueles anos de mãos-de-vaca, chambaril e bebedeiras teriam que cobrar seu preço. Tudo bem. É justo. Quando retorno, o táxi me deixa na porta do prédio. Respiro com dificuldade ao ver que a janela que eu fechei ao sair está agora aberta. Ao entrar em casa, olho para a janela. Ao lado dela, sentado na minha cadeira de balanço, lá está ele de novo, o velho, bebericando algo, sem dúvida alguma uma vodca com suco de laranja! Engraçado que desta vez não tenho tanto medo. Não, meu amigo, não tenho medo...tenho saudade... percebo que ele não me encara, não sei por quê. Parece chateado comigo por alguma coisa que eu fiz. Eu tenho vontade de falar, mas ele se levanta e se dirige ao segundo quarto, um que eu uso como depósito. Lá guardo pilhas e pilhas de bugingangas, livros, discos de vinil pré-históricos, um velho rádio...espero por alguns segundos e o sigo. Quando entro no quarto ele não está mais lá...

Mais um dia e, logo pela manhã, vou ao bar em frente, o "Pra Vocês" e bebo um pouco pesado para um velhinho do meu estado. É dia de reunião do clube dos "Daqui Ninguém Me Tira". É aquela associação, por assim dizer, de moradores e de descendentes de antigos residentes do bairro do Pina. Alguns têm conseguido ficar no bairro, não sei como, apesar de todas as tentativas de super empreiteiros, espigões de luxo, corretores de imóveis, donos de restaurantes chiques, artistas plásticos, consultórios médicos, enfim, qualquer coisa que os afaste da praia ou do boteco deles. Você deve se lembrar de quando eles ficaram famosos se acorrentando às portas do bar, no dia em que os oficiais de justiça e a polícia vieram numa ação de desapropiação, o que causou uma certa comoção nacional vê-los dispostos a apanhar, assim, pelo cantinho deles! No final, conseguiram ganhar a causa, talvez a única nas vidas deles. Ao longo dos anos, nós boêmios temos sofrido todo tipo de retaliação por parte da sociedade: leis anti-fumo, anti-álcool, anti-sexo, anti-música, anti-arte, divórcios com pensões abusivas, toque de recolher, impostos abusivos em tudo que de longe sequer lembre a palavra Prazer ou a liberdade das noites, a irmandade dos bares. "Aquele bando de imprestáveis ociosos" , dizem por aí. "Querem ter vícios? que paguem caro por eles!!!” Até parece que nossos inimigos sabem que o mote do clube é justamente esse, de que “uma vida sem vícios não vale a pena ser vivida”! No fim da tarde, depois de ser carregado por dois garçons e um amigo, vou para a cama.

Ás 3 da manhã, acordo dos meus sonhos de bêbado. Da sala vem uma música alta: o bom e velho Ray Charles cantando algum Blues. Quando chego lá , encontro meu velho toca-discos rodando um bolachão de vinil! Começo a suar frio de novo ao ver que ele nem sequer está ligado na tomada! O disco roda como novo, sem estalos. A música é linda, mas fico muito nervoso. Com as mãos trêmulas, retiro a agulha do disco. Ao lado do toca-discos está uma pasta preta, do tipo 007. Essa valise, que eu mantinha no depósito, guardou, por décadas, os documentos mais preciosos de meu pai. Agora ela aparece na sala...Coloco a pasta em cima da mesa. Ao abri-la, encontro umas folhas desbotadas, escritas com a caligrafia de meu pai, umas letras bem inclinadas e longas. Outras têm uma escrita diferente, mais delicada, talvez a letra de minha mãe. Parecem ser os velhos contos que ele gostava de escrever. Sento-me com dificuldade e mergulho no passado.

Fico emocionado ao reler aquelas histórias. Lembro-me que muitas delas passaram anos na cabeça de seu Riba, sem ele nunca passar para o papel. Era impressionante como ele contava e recontava aquelas histórias ao longo dos anos, sem nunca aumentar ou tirar um ponto. Era como se elas fossem realmente "escritas" na mente dele. Lembro-me que, depois de muito pedirmos, ele começou a , de fato, escrevê-las. Depois que a vista ficou cansada, minha mãe, dando uma de escriba, começou a tomar ditados, para depois digitá-los num blog. Na maioria deles o que se salientava era o senso de humor, negro é verdade, mas eram espirituosos de qualquer forma. Ainda me lembro de estarmos num bar qualquer e ele a contar as “histórias asssombradas” e nós morrendo na gargalhada! Porém, um deles não era nada engraçado... era um conto curto e sombrio sobre uma grande onda que destruía o bairro ou a cidade, não lembro...era uma espécie de vingança, uma maldição, pela expulsão deles do bairro do Pina, que eles tanto amavam. É justamente esse conto que procuro, quando ouço aquela voz inconfundível vindo de traz de mim! Minhas mãos se contorcem no papel que seguro, amarrotando-o...

"Você nunca cumpriu sua promessa!" Essa é a sentença que ouço naquele som anasalado e agudo da voz de meu pai. Viro-me com dificuldade. Na penumbra do corredor, ali está ele de bermudas e sandálias, mas sem camisa, roçando as costas na moldura da porta do banheiro, da mesma maneira que ele sempre se coçou. Nas mãos ele tem um longo calçador de sapatos, feito de chifre, que também sempre o ajudou na arte de coçar-se. Eu não consigo distinguir olhos ou boca naquela escuridão, mas nem precisa, de tão assustado que eu estou. "Já se vão mais de quarenta anos e você ainda não cumpriu sua promessa, aliás, você nunca nem sequer lembrava do meu aniversário, quanto mais de cumprir promessas!”, ele me repreende. Fico ali sem saber o que dizer, quando ele começa a me contar uma história. Ele fala num tom solene e cansado. Tudo é muito rápido, algo sobre a vida no além, mas não só isso. É algo que me diz respeito, também.

"Desde que morri tenho estado preso a ciclos de penitência. Ciclos viciosos, sem fim. O primeiro foi uma jornada para minha Belém do Pará. Todos os dias eu andava quilômetros e mais quilômetros, só para acordar todos os dias no mesmo ponto em Recife. Passei anos- como se houvesse tempo onde estou - tendo aulas de piano com uma professora invisível. Eu nunca conseguia sair da primeira lição. Todos os dias tinha que aprender as mesmas notas. Quando consequi sair desse, entrei num dos piores, que foi tentar encontrar a lógica do jogo do bicho. Ficava metido numa sala sem janelas, em meio a centenas de livros e anotações, tudo na tentativa vã de encontrar o algoritmo das bolas do sorteio. Nunca encontrei. Depois de todos esses sofrimentos, parece que aprendi como evitá-los, o que pode me proporcionar encontrar o caminho para fora desse purgatório: Desde que você se mudou para cá eu venho escrevendo e reescrevendo estes velhos contos. Percebi que comecei uma nova odisséia: passo horas escrevendo uma página, mas, quando vou para outra, aquela simplesmente se apaga! Eu nunca consigo terminá-los...foi quando lembrei-me da sua promessa de publicá-los, coisa não cumprida por você e que, de certa forma, isenta-me de algum pecado, pelo menos desse. Você pode me ajudar trazendo-os à luz e tornando-os conhecidos às pessoas, como eu sempre planejei. Talvez assim eu possa quebrar essa corrente mental e espiritual. Pense nisso. Agora eu precido ir...escrever e escrever...ah, antes que eu me esqueça: num dos contos eu consegui predizer o futuro. Se você ainda prentende viver mais, o que é um exagero nesta condição decrépita em que você está, você deve abandonar esse lugar nos próximos dias. Adeus!”

Meu dileto parceiro de tantos anos, meu tempo está acabando! (a “grandota” está vindo por aí, surfando alegre e salgada, a malvada!). Essas foram, mais ou menos, as circurstâncias que me fizeram editar e mandar imprimir os livrinhos de contos de meu pai. Quando você os receber amanhã aí na sua Caruaru, por favor, mande alguém ir à feira, às praças, aonde você quiser, e distribua-os! Não precisa vendê-los, apenas faça-os conhecidos. Deixe que eles falem um pouco dessas pequenas diabruras de meu pai, que são também um pouco as nossas, desse amor pelas histórias, pelos casos, pelos livros, dessa luta contra nossos fantasmas e, às vezes, a favor deles! Por via das dúvidas, publique, também, os MEUS, para que você não tenha, como eu tive, sustos no tempo que lhe resta!!!

Agora eu preciso ir. A balbúrdia lá embaixo está infernal! Alguns dias antes dos cientistas divulgarem nos noticiários, tentei avisar a meus amigos do clubinho sobre a catástrofe que estava para nos acontecer, da aparição do meu pai, das profecias de inundação, da destruição, do Fim, de que precisávamos partir...meu amigo, a reação deles foi totalmente inusitada e ao contrário de tudo que eu esperava! Queria tanto ter tempo para contar mais sobre isso!

Acabei de dar uma olhada pela janela...lá no bar as mesas estão lotadas! Acho que estão cantando animadamente “Teresa da Praia não pode ser minha, nem tua também”! Velhos loucos! Na primeira mesa do canto, de frente para a entrada, onde ele sempre sentou, há um trintão bonitão, de óculos bem escuros , meu pai. Enquanto ele preside uma mesa de vivos e mortos, ele vai ditando o jogo do bicho a um cambista que já deve ter morrido há uns bons 40 anos, o “mão branca”. Papa está magrinho como eu nunca vi, embora os cabelos já começem a ficar grisalhos... ele esbanja um sorriso bonito e confiante, feliz. Incrível que eu nunca tinha ouvido ele cantar, mas até fazer coro ele está fazendo! Rapaz, eu preciso descer e ver isso de perto! Meus amigos já estão batendo na porta para me ajudar a descer as escadas. Adieu, mom ami! Nos vemos em outras farras!

terça-feira, maio 29, 2007

A Casa do Piano

Pouco antes de mudar-me da praia do Pina para o bairro do Cordeiro, aconteceu-me algo inexplicável! A minha mulher estava reclamando de que eu não fazia mais caminhadas, ao que respondi que todos os dias andava... até o bar da esquina. Ela dizia:

--Só pra chegar lá sentar, conversar e beber!

Na verdade, até que, ocasionalmente, dava boas caminhadas, pois ia ao banco ou a um centro médico a  uns oito quarteirões de distância. Numa dessas idas, quando voltava andando com cuidado para não cair, dei com a cabeça num orelhão mal colocado na minha rua. Fiquei tonto, a vista escureceu, mas tudo levou apenas alguns segundos. Após soltar um sonoro palavrão, prossegui no meu caminho e, no quarteirão seguinte, passei por uma casa antiga com janelas que pareciam ameias de um castelo medieval e elas estavam abertas. Olhando para dentro da casa vi ao fundo um piano numa sala com poucos móveis. Fui envolvido por enorme nostalgia. Lembrei-me do tempo que estudei música  durante 4 anos, dos oito ao aos doze anos, quando o piano foi vendido. Depois disso nunca mais cheguei perto de um teclado.

Vi então que havia uma velha senhora ao lado do piano, severamente vestida de preto. Ela sorriu e fez sinal para que eu entrasse, apontando para a porta. Eu disse em voz alta:

--Obrigado, mas eu não sei tocar -- mas ela insistia e eu acabei entrando. Disse à senhora:

--Faz mais de sessenta anos que não toco piano -- Ela respondeu :

--Sente, feche os olhos, coloque as mãos sobre o teclado -- e assim fiz. De repente, minhas mãos começaram a se mover e toquei a minha música preferida na época, "Ondas do Danúbio", de Ivanovitch, e em seguida "Fantasie Impromptu", de Chopin, e "Sonhos de Amor", de Liszt, e algumas outras.

Finalmente parei, as mãos doloridas, com os dedos duros! Fechei cuidadosamente a tampa e levantei-me para agradecer à senhora, mas ela não estava à vista. Disse então em voz alta:

--Muito obrigado, mas preciso ir agora! -- Silêncio total. Supondo que ela estivesse no banheiro, disse mais:

--Estou indo e pode deixar que fecho a porta!

Ao sair, virei-me para a casa. Foi quando senti uma mão no meu ombro. Abri os olhos e vi que estava sentado na calçada debaixo do orelhão. Alguém perguntou:

--Quer uma ambulância?

--Não obrigado, apenas uma ajuda para levantar-me. Assim feito, perguntei:

--O que houve?

--O senhor bateu com a cabeça no orelhão e desmaiou...

Agradeci e segui o meu caminho... Mais adiante, passei pela tal casa... Olhei pela janela e vi que estava abandonada e até uma parte do teto havia caído! Não pude me controlar e chorei copiosamente, tamanha a tristeza que me invadiu. Finalmente controlei-me e, enxugando as lágrimas na fralda da camisa, segui meu caminho. Felizmente a rua estava deserta e em minha casa não havia ninguém na sala. Entrei rapidamente, lavei o rosto, e fechei-me em meu quarto, confuso e sem entender o que havia acontecido.



Fica aqui no blog o registro de mais um caso "verídico", acontecido nas brisas do Pina, mantido na família até então apenas em tradição oral... o acontecido foi sofrido, narrado e escribado por meu pai, seu Riba, com caneta BIC azul, em papel carta pautado, digi-copiado por minha mãe que, após severas instruções minhas por telefone, posteriormente selecionou, copiou, e colou em caixa de mensagem eletrônica, enviando à minha caixa de correio, o que foi finalmente e minimamente editado e publicado por mim mesmo! Valeu, Papa!

quarta-feira, março 07, 2007

The King Of Cool

Um amigo morria de rir com a pronúncia de Nat em espanhol ou ficava imitando "The King Of Cool" a cantar "Monalisa", sempre abrindo bem o "a" final:

--Monalissaaa, Monalisaaa!-- Achávamos engraçado, mas éramos fãs do negro de voz macia e sofisticada e que também tocava piano como poucos da geração dele.

Mês passado, me peguei procurando por músicas de Nat King Cole, numa daquelas noites nostálgicas, quando qualquer barulho ou desarmonia já seriam estopim pra um ataque de nervos. Comecei a baixar umas músicas pra lá de antigas, que me retomavam à minha infância, quando vivia mexendo nos velhos vinis de meu pai pra ouvir o cara que, antes das gravações, fumava, em cadeia, cigarros mentolados "Cool"! Às vêzes fico rindo daquela técnica nada ortodoxa e politicamente incorreta, provavelmente seguida por Sinatra e Bennett, de trabalhar a voz com bourbon, monóxido de carbono e nicotina! Provavelmente os mesmos cigarros acabaram com ele num câncer fulminante de pulmão, mas que a voz era bonita, isso era!

Quando a noite começou hoje, acabei por desencavar uma garrafa contendo algumas horas de Johnnie Walker e fiquei zanzando pelo Youtube, procurando por vídeos de Nat. Achei coisas raríssimas e belas. Vários duetos com Ella Fitzgerald, com Mahalia Jackson, este último, por sinal, emocionante, e até um com Billy Preston, o genial tecladista, na época com uns 10 anos de idade!

O que mais me empulha, pra usar a palavra certa, é o desempenho dele como pianista, coisa que era abafada pela carreira genial como cantor. Nos vídeos com o trio , formação que praticamente inventou, de piano, baixo e guitarra, ele toca de bandinha para o piano e de frente para a platéia! Sempre achei essa postura coisa de pianistas de Blues, nos bares "Honky-Tonky" enfumaçados da América, mas ali estava a própria sofisticação em pessoa tocando com uma naturalidade que até incomoda a quem é músico, cantando e rindo. Perfeito! É incrível como quase não se ouve Nat King Cole ou quase nada que preste nestes dias...

Fim de noite. O relógio já bate ( como se eu tivesse um que batesse!) umas 11 da noite. O cinzeiro já vai abarrotado, não de Cools, mas enfim...As pedras de gelo já boiam na última dose (como se eu medisse em doses!), quando decido arrematar minha noite inebriante com Nat King Cole. Mas aí  acontece uma daquelas coincidências de deixar um cara pensando...ou melhor, a coincidência já estava acontecendo há um bom tempo, e eu não sabia.

Estou eu aqui feliz com essas facilidades da Internet e uma boa conexão, é claro, de poder, num estalo, resolver ouvir e ver alguém e, de fato, em segundos, estar com o vídeo na sua frente. Resolvo fechar a sessão com algumas informações biográficas, acho que na Wikipedia. Abro a página que mostra-o um pouco sério, num terno impecável e, de repente, esbarro na data da morte dele...

Há exatos 42 anos, num mesmo 15 de Fevereiro (hoje), falecia "The King of Cool", Mr Nat King Cole... Na verdade eu não sei de onde veio essa idéia de ouvi-lo. Eu agora não consigo lembrar de coisa alguma que tenha disparado essa vontade, mas, como sempre, também não perco muito tempo querendo explicar coincidências: digamos que eu interpretei a coincidência assim: é pra divulgar aqui no robelixblog a existência deste artista extraordinário que, em 1965, resolveu ir cantar em outras freguesias mais afortunadas do que a nossa. Emborco o final da mistura de malte com água e vou dormir cantando "unforgettable, that's what you are"...



domingo, novembro 26, 2006

E Robelix virou tira de Quadrinhos!



Quando eu nasci veio um anjo safado, um chato de um querubim,
que decretou que eu estava predestinado a ser errado assim
--

Chico Buarque de Holanda


E a máxima do "tem amigo safado quem pode" se prova verdadeira! Estava eu trabalhando, quando recebi um telefonema de Miguel, dublê de cartunista/vocalista de músicas incantáveis/impróprias da banda Capitão Gancho. Ele passou meia hora jogando conversa fora, reclamando da vida, enchendo minha bola, dizendo que eu era um cara que o entendia e eu só ouvindo. Já na hora de desligar ele me diz pra comprar o Jornal do Comércio do domingo, que ele tinha feito uma "singela" homenagem a mim. "Hum, isso me deixa inquieto", eu falei, já lembrando da última vez que ele tinha me homenageado de maneira singela quando tocávamos juntos. Ele deu uma gargalhada e disse que tinha ficado muito legal! "Agora eu estou seriamente preocupado!", disse eu, já nervoso, sabendo da habilidade do safado.

E o domingo finalmente chegou...como meus pais sempre compram jornal, eu tinha pedido a eles pra segurar uma cópia, caso eu me esquecesse de ir às bancas. Meio ingenuamente, conhecendo minha mãe e suas neuras de saúde comigo, até disse que tinha algo comigo lá, pra eles darem uma olhada...Tou eu trabalhando de novo e ligo pra casa dos velhos. Quem atende é minha sobrinha, que já vai perguntando "se eu realmente como feijoada no café da manhã"! "Hem, que estória é essa, menina?", ao que ela respondeu "é que sua mãe viu uma estória com você no jornal e ficou preocupada!" Miguel Falcão tinha atacado novamente!

Como se não bastasse comer "comida que faz merda" no café da manhã, eu ainda estava, de acordo com a charge, fumando 10 carteiras de cigarro por dia! Eu deixei na secretária eletrônica um recado desaforado pra ele, refrescando a memória do miserável que, das supostas 10 carteiras que eu fumava, 9 era ele quem me "presenteava"! Ele é fumante de ocasião e adora comprar cigarro pra experimentar. Um dia desses ele chegou pra mim com uma sacola cheia de carteiras de Hollywood, uma de cada cor, das quais, obviamente, nenhuma prestava. Ele fumou um de cada e me entupiu de cigarro que dava pra um mês! E eu nem quero falar das cigarrilhas "estoura peito" que ele insiste em trazer para os shows, jurando por Humphrey Bogart que elas se tragam! Da última vez que tentei, as lágrimas correram soltas, tamanha congestão! Também, nos ensaios da nossa banda, que supostamente deveriam ser pra tocar música, sempre vem Miguel com uma bacia de bacalhau com fava, que entornamos com cerveja e a pimenta preparada por ele mesmo? No fim de minha mensagem roguei uma praga pra que ele arranjasse umas hemorróidas com aquelas pimentas que ele come, pra nunca mais ele "difamar" a memória do quase monge vegetariano Robelix!

Ah, e a melhor de todas! Minha mãe perguntou se esse tal de Miguel não teria sido um "Anjo" na minha vida, trazendo um sinal pra eu me ajeitar!!! ha ha ha que ironia!!! Só se foi o querubim de Chico Buarque!

sexta-feira, novembro 24, 2006

Morango Jungle e o Canavial Blues

Em 1998, eu conheci Jô Pinto, atual baterista da El Mocambo, recém-chegado do Sul, e Alexandre Santiago, veterano da guitarra na cena do Recife. Juntos formamos a Morango Jungle, um nome psicodélico para um trio nem tão louco assim. A proposta era tocar Blues-Rock de qualidade e, com poucos ensaios, já estávamos batalhando nas noites do Recife. A banda tinha um som vigoroso e inclinado à improvisações, bem ao estilo do Cream ou a El Mocambo aqui na cidade.

Depois de algum tempo, conseguimos gravar um CD demo e enviamos a bolhachinha para um monte de gente na esperança de conseguir mais espaços. Gravamos o disco com a auxílio luxuoso do nosso amigo Junior Areia, excelente baixista, que hoje está com Fred 04 e que atuou como nosso técnico de som e fez a mixagem. Passamos apenas uma manhã no estúdio e colocamos lá 4 clássicos pra que as pessoas pudessem ter uma idéia do som da banda, inclusive com uma versão mais dançante de “I Shot The Sheriff”,de Bob Marley, mais “The Thrill is Gone”, “Hoochie Coochie Man” e “Crossroads”.

Uma noite, já meses depois da gravação, uma coisa inusitada aconteceu: Alexandre recebeu um telefonema de um cara com sotaque paulista que queria informações sobre o disco e saber como poderia conseguir algumas cópias. Alexandre achou engraçado o sotaque e perguntou se ele era de São Paulo. Ele respondeu que não apenas 'era', mas estava naquele momento falando de Sampa! O cara contou que tinha acabado de comprar a Guitar Player brasileira e essa tinha uma nota sobre “um trio promissor de Blues-Rock no nordeste”, assinada por Márcio Okayama, guitarrista e colunista da revista, que tinha uma fama terrível de arrasar com CDs Demo de que ele não gostava. Daí sempre brincarmos que ele tinha tomado umas na noite em que ele escreveu a nota e “se engraçou” com a gente! Mas o disco estava razoavelmente bem feito, se comparado às nossas parcas condições financeiras!

O bom dessa estória do disco é que ganhamos mais confiança e em pouco tempo estávamos recebendo Greg Wilson, o americano tornado carioca, guitarrista e vocalista da banda pioneira Blues Etílicos, para a primeira turnê dele pelo nordeste. Na verdade, era a primeira vez que ele saía do Rio pra tocar com outros músicos, num projeto solo, e ficamos aqui esperando com certa ansiedade. Mas quando finalmente o conhecemos, qualquer expectaviva de encontrar alguma estrela do Blues, cheia de manias e luxos, foi logo dissipada no único ensaio que fizemos. Ele já chegou com um pack de cerveja, o que nos agradou imensamente, e da maneira mais informal possível passamos só o início das músicas para, segundo ele, não perder o tesão de toca-las, e os finais a gente veria na hora, no show!

A mini turnê foi sensacional, com shows em João Pessoa, Recife e Maceió. O show em Recife foi casa cheia, no finado “Bola Gato”, aquele bar enorme que existia atrás do Arsenal da Marinha, e um inspirado Greg sacou até um trumpete para solar, coisa que nem sabíamos que ele tocava! Estávamos nos divertindo bastante, mas ninguém sabia que tínhamos começado a turnê com uma aventura bem inusitada. Antes de tocar aqui, tínhamos ido primeiro a Maceió. Enquanto seguíamos para a capital alagoana, estávamos ali na maior descontração, naquela de se conhecer, quando nos deparamos com um grupo de Sem-Terras fechando a BR bem na nossa cara! O povo já ía colocando os pneus velhos na estrada para aquela tradicional fogueira de fumaça negra! Ficamos ali sem ação e preocupados, não só com os horários, mas também por estarmos perto demais das manifestações. Quem quebrou o silêncio foi o motorista, quando disparou: “acho que tenho uma idéia!”...

Por onde entramos eu não sei. A única lembrança que tenho é do carro cortando por dentro de um monte de cana, buracos, montes e o diabo a quatro. Era uma cena louca, melhor “apreciada” por mim que estava na frente. Não havia coisa alguma que você pudesse chamar de “caminho”, rua, passagem, nada, só cana, buraco e lama pela frente. Eu não tenho a menor idéia como aquele cara estava se guiando. Nem com bússola eu acharia meu caminho ali! E de repente aconteceu o inevitável: atolamos...E “de cum força”, como dizemos aqui. Descemos para avaliar a situação, e as rodas traseiras estavam totalmente submersas naquela lama de barro. Tivemos que descer todos os instrumentos e bagagem pra aliviar a carga, e também calçar a roda com palhas de cana, ou coisa parecida. De todos ali o mais disposto era Greg, que pôs literalmente a mão na massa na operação! Depois de muita luta conseguimos desatolar, não sem antes um belo banho de lama quando o carro acelerou. A cena foi hilária, e nos uniu bastante pra os shows que estavam pra acontecer. Passamos o resto do fim de semana rindo da desgraça do outro, e nos comprometemos a fazer uma música sobre aquela saga, mas nunca cumprimos a promessa. A música seria apropriadamente chamada “Canavial Blues”, sobre a ironia fina, pra não dizer sarcasmo, dos deuses do Blues, que nos jogaram literalmente na lama de uma plantação (que só faltava ser de algodão!), pra termos uma pequena amostra do espírito do Blues, e que fortaleceu laços também, para a missão que tínhamos pela frente.

sábado, setembro 09, 2006

Do Uruguai a Madalena


Mercado da Madalena


No começo de 2001 tive uma segunda passagem rápida pela Uptown Band, antes do meu auto-exílio nos EUA por 4 anos. Naquela época a banda estava passando uma temporada no finado bar Uruguai nas ladeiras de Olinda. Era um taverna super charmosa, com uma lotação de, no máximo, meia centena de pessoas. Todos os meses Giovanni Papaléo estava trazendo vários convidados ilustres do blues brasileiro, quando geralmente eles vinham para tocar na Sexta no Uruguai, e Sábados no Downtown. Por coincidência vamos ter dois daqueles convidados dividindo o mesmo palco no "OI Blues By Night" este mês de Setembro aqui em Recife: Lancaster e Big Joe Manfra.

Naquela temporada, Lancaster foi o primeiro que conheci, ainda no final de 2000. Ele veio acompanhado de Flávio Naves no órgão, e fizemos shows apoteóticos nos dois bares, com destaque para a noite no Downtown, com casa lotada, onde ele foi pro meio das massas com sua guitarra Telecaster sem fio. Ele tocou em cima das mesas, do balcão e, a la Buddy Guy, provavelmente foi perturbar alguém nos banheiros também!

Mas a melhor recordação que tenho de Lancaster foi um papo no jantar, já depois do show no Uruguai, ainda na Sexta-Feira. Eu estava me preparando para viajar, e não tinha a menor idéia como os gringos iriam me receber, musicalmente falando. Ele me pegou em meio a essas preocupações, e disse com a maior calma do mundo que eu iria me dar bem, e que ele apostava em mim. A princípio eu fiquei meio incrédulo, achando que ele só estava fazendo média. No Sábado, quando nos despedimos, ele repetiu as mesmas palavras, e dessa vez eu resolvi carregá-las comigo na minha aventura. No final ele estava certo. Na primeira noite que toquei numa Jam ainda em Athens, Geórgia, o negão de quase 2 metros que cantava lá veio falar comigo no final: ele chegou sorrindo e me deu um abraço que quase me quebra uma costela. Ele disse que eu era bem vindo, e que eu voltasse sempre que quisesse... Fiquei devendo essa a Mr Lancaster...

Big Joe Manfra é outra figura rara. A guitarra fica pequena na mão dele, e que é uma mão peso-pesada. Mas maltratar mesmo só as pobres das guitarras dele. No convívio social ele é o cara pra você passar a noite rindo das estórias. Tocamos também na Sexta, e após o show ficamos ali de bobeira no balcão do bar, tomando umas, de leve. Lá pelas tantas ele sugere irmos a outro local qualquer, continuar o papo. Acabamos num bar também extinto agora, o Pretexto, que ficava ali na frente do Carrefour, ao lado do posto de gasolina. Mal tínhamos chegado, e aparece um maníaco sexual do Blues, meu amigo Wilson Neto. O cara quase cai pra trás com meu convidado! Ele imediatamente encostou o carro perto da gente, para ouvirmos horas de Blues a fio, tudo regado a muita cerveja, uísque, e uma tal de cachaça caseira, vermelha(!) que eles tinham.

Lá pelas tantas eu não sei quem teve a idéia brilhante, e eu digo que isso é coisa de bêbado. Dos bêbados eu tenho que eximir Big Joe, porque primeiro ele tava mais era criando um aquário no copo dele, embora sem nunca perder o espírito da noite, e segundo porque ele não conhecia a cidade para fazer uma sugestão daquelas. Mas a idéia é que cismamos que Big Joe tinha que comer um "Patinho no Feijão" no mercado da Madalena! Já estava quase na hora do mercado abrir, e saimos, aquela trupe incansável para o tal lugar. Chegando lá, o dono do "Bar dos Cornos" ficou olhando incrédulo aquela invasão bárbara, que insistia com ele se já saía um patinho no feijão e cerveja gelada às 7 da matina! Ele disse que sim, do dia anterior, ao que vibramos dizendo que aquele é que era o bom, que já tava apurado!

No final, lá pelas 10 da manhã, fui deixar Big Joe no hotel em Boa Viagem. Ficamos ali ainda rindo das estórias e fazendo piada do povo fazendo ginástica no calçadão! Ainda hoje, quando nos falamos, ele ainda se gaba de ter batido na cachaça, e carregado pra casa um tal de Bob Milk, que ele me apelidou, que diziam beber muito. Eu mereço!

quinta-feira, agosto 31, 2006

Puxando Uma Angústia

Nada como tomar uns choppes com um amigo e puxar uma angústia - Fernando Sabino


Este vai dedicado a Fernando Sabino, que me esclareceu o que eu já sabia, mas não tinha palavras para descrever. Como é bom "puxar uma angústia", não só com os bons amigos, mas fazendo carreira solo também.

Hoje fui pego de calças curtas, por causa de uma canção. Não era a primeira vez que eu a escutava mas eu sempre a interpretei de outra maneira, que também se aplica, mas nunca desconfiei das intenções originais de quem escreveu. Da primeira vez que a ouvi, eu estava longe de casa, provavelmente dirigindo numa daquelas highways americanas e logo fui atingido pela tristeza da música e pela voz da cantora. A primeira impressão que tive é de que ela falava do envelhecimento dela e de um relacionamento amoroso que parecia estar acabando depois de muitos anos. Os versos podiam até ser lugares-comuns, mas a vocalista colocava o peso da voz dela, rouca e grave, despojada, de uma maneira que me deixou até desconfortável. A música seguia com expressões tipo "o tempo faz de você mais corajoso, as crianças envelhecem, e eu estou envelhecendo também" ou então: "eu tenho tido medo de mudanças, porque eu construí minha vida ao redor de você" ou "será que eu consigo lidar com as estações da minha vida?"...

E o tempo passou, anos, até que, hoje, eu estava aqui em casa desavisado, pensando na morte da bezerra, na idade, 41, no passado, no futuro etc, realmente melancolando. Eu estava mexendo no computador, procurando por vídeos meio sem pretensão. Minha filha estava, aos meus pés, concentrada em abrir um saco enorme de bichos de pelúcia que ela tem. E aí eu esbarro no vídeo de Fleetwood Mac com a cantora Stevie Nicks se preparando para cantar "Landslide". Ah, eu pensei, é aquela música bonitinha que eu ouvia lá em Atlanta!

O violão começou a introdução e , neste meio tempo, minha filha conseguiu finalmente tirar do saco um urso enorme, o que ela prontamente me chamou atenção para o feito dela, dizendo "oh oh", rindo e apontando para o bicho peludo. Tanta coisa se passou na cabeça nesses milésimos de segundo, entre aquela aparição de minha filha brincando no chão e a aproximação da cantora do microfone!

Para quem foi pai tão tarde, aquela cena era realmente um achado na vida, uma bela surpresa das mais incríveis, mas que trazem para um melancólico de carterinha e anuidades pagas um monte de sensações misturadas de paternidade, de eternidade, mas de finitude também. É uma mistura de querer que aquele momento dure para sempre, mas já sabendo que tudo aquilo vai passar, embora eu saiba que aquele sorriso inocente vai ficar congelado dentro de mim pra sempre, enquanto houver eternidade em mim.

Stevie Nicks finalmente chegou ao microfone e murmurou algo que me gelou o sangue, porque eu tive a impressão que minha filha é quem tinha falado! "Esta é pra você, pai". E então meu mundo foi desabando como na música que ela cantava, sobre uma avalanche de neve por morro abaixo. A música que eu sempre interpretei como sendo sobre uma mulher falando para o marido, na verdade, pelo menos naquele momento, era sobre uma Filha falando para um Pai! E que momento foi esse que eu fui achar esse vídeo! Eu nem tentei segurar as lágrimas porque era perda de tempo...A pequena aos meus pés achou pouco e soltou os bichos e subiu no meu colo para ouvir a música comigo, sempre sorrindo e apontando para tela. Será que ela estava querendo dizer "faço dela as minhas palavras" ? Eu não sei... Em todo caso, vou colocar as letras no original aqui embaixo, com o respectivo vídeo, para que outros tirem suas conlusões, enquanto eu vou continuar puxando essa angústia, em busca de respostas que nunca virão, eu sei, mas vou tentar aproveitar essa busca com uma cerveja bem gelada, que eu estou necessitado!

Landslide - Fleetwood Mac
I took my love, I took it down
Climbed a mountain and I turned around
I saw my reflection in the snow covered hill still the landslide brought me down
Oh, mirror in the skyWhat is love
Can the child within my heart rise above
Can I sail thru the changing ocean tides
Can I handle the seasons of my life
Well, Ive been afraid of changing cause Ive built my life around you
But time makes you bolder
Children get older
Im getting older too
Oh, take my love, take it down
Climb a mountain and turn around
If you see my reflection in the snow covered hills
Well the landslide will bring it down
If you see my reflection in the snow covered hills
Well maybe the landslide will bring it down