terça-feira, junho 20, 2006

Depois de Ontem à Noite


Eu vejo um garoto. 7 anos de idade? Ele está na sala de casa dando gargalhadas. Está rodando como um pião. Rápido, mais rápido, mais! De repente, ele para e deita-se no chão com os olhos fechados...


Não consigo lembrar no que eu pensava quando eu rodava. Não consigo lembrar no que eu pensava ontem à noite. Quem inventou a ressaca, o Homem ou o mar? Ou seria a lua? Estou agora andando pela praia. A orla está arrasada. A linha de areia úmida se estende até perto da calçada. Lá, na demarcação de território do mar e da terra, estão todo tipo de dejetos: garrafas plásticas, uma boneca sem cabeça, flores murchas, uma sandália solitária e muito sargaço. O mar continua revolto, turvo, ameaçador. Parece que ele ainda acha pouco o que fez na praia. O sol não veio trabalhar, mas o vento sul e frio sim.

No que foi que eu pensei tanto ontem à noite? Deve ter sido importante ou não. Não consigo. Algumas cenas vêm partidas: estou abrindo a segunda garrafa de uísque. Vejo gente se mobilizando para comprar mais uma grade de cerveja. Todos parecem muito alegres, afinal ganhamos no futebol, por bem ou por mal, mas ganhamos. Vejo violões sendo empunhados. As pessoas cantam, bebem, fumam muito. Acabo de abrir minha segunda carteira numa tarde. Estamos todos alegres. Estamos? Acho que sim, mas não consigo.

Arrisco molhar os pés na água, mas está tão fria! Fico observando meu pé afundar na beira d'água. O que é que nos faz rodar como um pião até que o mundo começe a girar do mesmo jeito? Sinto-me tonto. O mar não só entende de ressacas, mas de vertigem também. Ele balança os barcos até vomitarmos tudo que nos mantêm em pé. A contrapartida é que vomitamos nele de volta. Estamos quites.

Tento perguntar aos gregos. Eu preciso entender por que rodamos como um pião até que o mundo rode também. Vejo agora Dionísio e ele está numa clareira da floresta. Há uma multidão ao redor dele. Ele conta estórias engraçadas. Bem, devem ser, pois todos estão rindo. Daqui da distância, ele parece um excelente anfitrião. Ele também mantém todos os copos cheios. São taças belíssimas de ouro e de prata e ele vai despejando um líquido espesso e escuro nas taças. Todos riem, se abraçam. Algumas mulheres - ou seriam ninfas - começam a dançar. Outros tocam flautas e liras. Daqui dessa praia devastada, tento perguntar a uma das mulheres. Ela tem cabelos longos e ruivos. Ela é belíssima. Ela se afastou um pouco do grupo e tenta balbuciar algumas palavras, mas não entendo. Pra minha surpresa ela começa a rodar e rir e... ainda vejo-a cantando a melodia mais linda que já ouvi. Desvio meu olhar para o resto do grupo e vários casais, trios, grupos, já estão se formando, se acariciando, se beijando. Não vejo mais Dionísio. Queria perguntar a ele um monte de coisas, a começar por qual safra era aquela daquele vinho, mas agora é tarde e o resto do grupo está muito ocupado para me dar atenção. Ao amanhancer vão estar todos caídos na grama inconscientes, desmemoriados, cansados. Fartos? Eles vão ter que se levantar e correr para suas casas antes que os pais, os maridos, as esposas, enfim, alguém perceba a ausência deles.

E eu aqui nesta praia nublada. Só. Mantenho meus pés na areia molhada. Quero eles bem firmes agora. Com a ajuda da água, a areia já dá uma volta no meu tornozelo. Sinto alguma estabilidade por fim.

Tenho uma lembrança engraçada: na casa onde passei a infância, na parte de dentro da porta do banheiro, havia uma cruz pintada à mão: era um sinal de uma promessa! Após passar a noite em vômitos e dores, um tio meu tinha prometido nunca mais beber! Ele nunca cumpriu a promessa, mas a cruz ficou lá pra sempre. Penso em riscar uma cruz na areia, na flor da água, que dure na proporção da minha determinação, mas desisto. Mas eu queria entender.

Tenho uma outra visão: eu me vejo agora com uns 13 anos, junto com meus primos, aqui mesmo nessa praia, todos bêbados. Era uma noite super agradável e tínhamos acabado de tomar uma garrafa de uísque nacional - e, é claro, ruim, mas eu achava que uísque era assim mesmo. Havíamos roubado a garrafa da casa dos tios e agora havíamos saído para comprar cigarros. Fumávamos um atrás do outro, sofregamente, e nunca mais cigarros foram tão gostosos. Mas eu ainda não entendo.

Tem uma outra cena da mesma época. Estamos, o mesmo grupo, numa cabana no interior do Rio Grande do Norte, no meio do nada. Era aniversário do garçom da lanchonete que frequentávamos e andamos léguas e léguas, como eles dizem, até chegarmos nessa casinha de barro batido e teto de palha. No interior, estamos sentados ao redor de uma mesinha baixa à altura dos joelhos, sentados num banco que era da extensão da mesa. No centro, está uma panela enorme cheia de um cozido das patas da vaca. Ao lado da panela, estão as garrafas de aguardente e os copos. O anfitrião, muito humilde, mas muito orgulhoso do seu banquete, enche todos os copos até a borda. Não, não eram dois dedos, como eu costumava ver nos botecos. Era até a borda. Até o limite da sanidade... então, todos nós, garotos, com aqueles bigodinhos ridículos ainda a crescer. A do santo já derramada no chão de areia batida, que eu nem me lembro qual entidade era, se católica ou africana, porque mesmo nem acreditava em um ou outro. Pensando bem, hoje em dia, acho que teria sido melhor ter acreditado em alguma coisa, mas enfim. Tínhamos, na outra mão, uma garfada do guisado. Virávamos os copos por garganta a dentro. Não, não era fazendo beicinho de golinho e golinho. Tinha de ser com a boca bem aberta de um gole só e sem caretas, porque éramos Homens. Em seguida, comíamos a carne gordurosa. Aquela sensação do líquido descendo, queimando o esôfago, espalhando-se por todo o estômago. O que era aquilo? Eu ainda não sei. Estou escrevendo pra entender, para gritar perguntas.

Tento pensar, mas a cabeça dói. Deixe eu tentar, enquanto meus pés se enterram mais e mais:

Ah isso é perversão fuga da realidade não querer crescer a entrega aos sentidos da carne a volta ao paganismo aos bacanais de Baco você não era Dionísio seu dissimulado que falava grego e agora latim ou seria uma falha moral mas uma falha moral de fábrica ou foi acidente de percurso desgaste natural das peças e então faríamos um "recall" para a troca de partes defeituosas ou a falta de deus ou justamente o contrário ou não a busca de

Estou tão angustiado. O corpo dói. Mas eu preciso.

Ouço uma voz por trás de mim. Não me lembro há quanto estou aqui. Tento me virar, mas os pés estão cravados na areia. Sinto-me ridículo. Uma senhora baixinha e gorda aparece ao meu lado. Ela tem um chapéu de palha por cima de um lenço na cabeça. A pele é bronzeada e enrugada. Na face, um sorriso desdentado. Ela parece tão familiar, mas de onde? Ela inicia a conversa:

-- O senhor num tá me reconhecendo, não?

-- É...

-- O doutor vinha muito aqui.

-- É verdade... -- Ainda tentando me desvencilhar da areia.

-- O senhor tá engraçado. Tá querendo virar uma bananeira, é?

Eu tento ensaiar um sorriso. Ela continua:

-- Olhe, já tá tudo armadinho ali, e eu tenho uma cadeira que aguenta o senhor, reforçada. O senhor engordou um pouquinho, não foi?

-- Pois é, já pensou? - Me viro na direção que ela apontava e começamos a andar para onde estava um carrinho de mão, que portava uma grande caixa de isopor, cercada de guarda-sóis cravados na areia.

-- Tá um dia feio meu filho... já vi que o movimento vai ser ruim. Mas eu faço um precinho bom pro senhor.

-- Que bom... escuta, a senhora alguma vez já rodou, rodou, feito um pião doido e depois fechou os olhos?

quinta-feira, junho 01, 2006

Uma conversa com o espelho e a música

Agora eu me pergunto como é que eu poderia ser diferente do que sou esse místico introvertido réu não confesso ao ponto de ser seduzido pelo objeto do mundo lá fora pelo que está por trás do véu de Maia dos budistas eu com toda aquela pressão católica por parte dos pais igreja primeira comunhão e depois eu mesmo o salto de fé crer porque é absurdo e loucos por causa da cruz de Cristo Kierkgard Agostinho Tomás e toda aquela balbúrdia de teólogos que existiram e mais uma porrada nascendo todos os dias nos quintais das igrejas todos à boca miúda revelando a poucos a nova revelação aquela que ninguém vê por que estão perdidos o mundo está perdido sim porque o espírito fala a todos e revela todos os dias um novo credo uma nova revelação a verdadeira interpretação da porra de uma vírgula do livro de Jó e que muda toda a visão e o conhecimento da vontade de Deus pra os homens e eu achando pouco indo mais fundo no meu vigor de coroinha cheio de juventude e credulidade em auto flagêlo na perda daquela mesma juventude em cânticos louvores orações jejuns anjos demônios e endemoniados lutas celestiais revelações provações tentações vitória do espírito sobre a carne e vice-versa sonhos profecias e apocalipses e depois... e depois a queda o vazio o abandono a solidão que estava lá o tempo todo mas eu não sabia e as bebedeiras a nau a perder-se em mares desconhecidos eu um adulto que parou aos 16 pra vida real humana agora sem deus ou um deus que não interfere que não se importa não mais um deuzinho pessoal amigão que vai a todo canto como um chaveiro
Como se livrar de todo esse passado carregado de loucura e transes? Aí vem o pouco que gostei de Krisnamurti: deixa estar, ou seria let it be dos Beatles ou let it bleed dos Stones? De qualquer forma consegui paz ao aprender a aceitar essas imagens que vêm de um passado recente que, queira eu ou não, fazem parte de mim. É minha estória. Eu apenas fico ali tipo meus amigos espíritas quando ouvem um ruído na casa: se é de paz pode entrar, irmão! Deixa rolar sem julgar, sem tentar fechar a porta, que não adianta.

E no meio de tudo isso, como um milagre, que ironia! Uma florzinha nasce bem no meio da calçada movimentada: Música. Aprender música naquele ambiente tão místico foi muito importante e me jogou nesse mundo musical já como um veterano. Um amigo blueseiro me definiu o que é tocar Blues: "É criar uma atmosfera em torno da música, que é muito simples, mas onde as pessoas vão se sentir bem, ou vão sentir dor, ou vão ter força pra enfrentar a mesma dor."

Quando vejo dali do palco as pessoas de olhos fechados, às vezes se emocionando com uma estória que às vezes nem é a delas...eu fico me perguntando, e aí pessoal, o que é que tá pegando, tá bom, tá doendo? Não é muito diferente dos meus 16 anos, já tocando num ambiente cheio de mistérios, manuseando algo que eu nem entendia direito, o poder da música, tentando trazer a presença do próprio Deus para o lugar. Acho que hoje continuo talvez sendo o mesmo. Sim, ainda sou o mesmo. Quem mexe com esse negócio de música entende o que estou falando, que música é apenas mais um tipo de oração, talvez a única que ainda consiga praticar...

Uma partida de Xadrez muito louca

Essa vai em resposta a Millôr, que disse (acertadamente, vá lá!) que o xadrez é excelente porque desenvolve a mente espetacularmente para....jogar xadrez!
Por incrível que pareça, o texto abaixo foi tirado das ondas da internet, em meio a uma partida de xadrez psicodélica, por correspondência, com meu parceiro Catão, que é advogado, presidente da OAB na cidade dele, como também formado em psicologia, e um bom filósofo da vida. A partida já se arrasta por mais de um mês, e sem querer até ficou em segundo plano, mas as mensagens-farpas filosófico-culturais, que vêm junto com os lances, estão pegando fogo! Ele me mandou um texto tirado de um livro que ele estava lendo. Um livro das ciências, como ele disse, na tentativa de contrabalancear o Romantismo exarcebado meu e dele também! Talvez fosse uma tentativa de defender a "transpiração" em primazia à "inspiração", não sei. Mas ele foi cutucar logo um músico de blues! Abaixo vão uma parte do texto e minha resposta:

Todos somos criativos. Cada vez que enfiamos um objeto conveniente sob a perna de uma mesa que balança ou que pensamos num jeito novo de subornar uma criança para que ela vista o pijama, usamos nossas faculdades para criar um resultado singular. Mas os gênios criativos distinguem-se não só por suas obras extraordinárias mas também por seu modo extraordinário de trabalhar; não se supõe que eles pensem como você e eu. Eles irrompem em cena como prodígios, enfants terribles, jovens rebeldes. Ouvem sua musa e desafiam a sabedoria convencional. Trabalham quando bate a inspiração e fervilham com insight enquanto o resto de nós caminha arduamente com passos de bebê pelas trilhas muitíssimo batidas. Põem de lado um problema e o deixam incubando no subconsciente; então, sem aviso, uma luz se acende e uma solução totalmente formada se apresenta. Ahá! O gênio deixa-nos obras-primas, um legado da criatividade irreprimida do inconsciente.

A imagem evidenciou-se no movimento romântico há duzentos anos e hoje se encontra firmemente arraigada. Consultores de criatividade cobram milhões de dólares das empresas por workshops dilbertianos sobre brainstorming, raciocínio lateral e fluxo do lado certo do cérebro, com resultados garantidos na transformação de cada administrador em um Edison. Conceberam-se teorias elaboradas para explicar o incrível poder do inconsciente sonhador para resolver problemas.

Como Alfred Russel Wallace, alguns concluíram que não pode haver uma explicação natural. Diz-se que os manuscritos de Mozart não têm correções. As melodias devem ter saído da mente de Deus, que escolheu expressar sua voz por intermédio de Mozart.

É pena que as pessoas criativas estejam no auge da criatividade quando escrevem sua autobiografia. Historiadores vasculharam os diários, cadernos, manuscritos e correspondência dessas pessoas em busca de sinais do vidente temperamental acometido periodicamente por raios do inconsciente. Infelizmente, descobriram que o gênio criativo está mais para Salieri do que para Amadeus.
1.Eu, no sentido estreito, popularesco, da palavra, também sou romântico. Uma vez escrevi uma longa carta de amor pra uma paquera. Ela ficou horrorizada, e mostrou pra todo mundo, perguntando se eu era doido, ou o quê. Nunca mais deixei um rastro registrado assim de uma paixão, nem em fotografia. Mas ainda adoro um platonismo. Acho super saudável!
2. Acredito piamente na inspiração, e rezo todas as noites por esse livro, de joelhos, e em contrição.
3. Acredito em transpiração também, muitas vêzes sobre a inspiração, mas isso não vende livros, nem cria lendas. Também acho que um reles lampejo de inspiração é muito melhor do que uma catedral erigida com cálculos meticulosos e pensados.
4. Charlie Parker, o genial saxofonista era um gênio, mas estudava 12 horas por dia. Seria ele, especificamente, um gênio se não estudasse? Ou ele não era um gênio, mas apenas alguém que estudou muito? Não podemos cientificamente comprovar.
5. BB King, entre outros, é um gênio, mas nunca aprendeu o que é um "dó re mi", quanto mais escrever uma partitura sem errar!
6. Os gênios podem surgir quando alguém se especializa demais num assunto, pensa o dia todo no tema e, de repente, têm uma "visão", uma "revelação", que ningúem talvez jamais teria. Outras vêzes é apenas acaso. Ele simplesmente entrou por uma porta que ninguém sabia e viu um mundo novo.
7. No fim, você pode chamar de gênio aquele sortudo que esbarrou numa dessas portas acima.
8. Ainda acho mais excitante a poética de Platão, Schopenhauer, Nietzche do que a lógica de Aristóteles, Russell ou Witgenstein, e que o diabo os carregue!
9. Não acredito em auto-biografias, nem a minha!
10. Tá pra nascer ainda um gênio que salve a reputação de Salieri, e convença o mundo, e que o enquadre naquela condição dos gênios injustiçados. A situação tá meio desesperadora depois desses 300 e tantos anos, sei lá!
11. No fim ainda acho que ser barroco, romântico e existencialista fica uma combinação perfeita. Tudo que for exagero, apaixonado demais, e por isso sujeito a erros, intuitivo, louco, falho e humano, fica bem, combina, com o ser humano, e o faz mais belo! O sonho ainda é sempre conquistar para o Homem toda a divindade que lhe é devida, por mais que sejamos tortos!