quinta-feira, agosto 31, 2006

Puxando Uma Angústia

Nada como tomar uns choppes com um amigo e puxar uma angústia - Fernando Sabino


Este vai dedicado a Fernando Sabino, que me esclareceu o que eu já sabia, mas não tinha palavras para descrever. Como é bom "puxar uma angústia", não só com os bons amigos, mas fazendo carreira solo também.

Hoje fui pego de calças curtas, por causa de uma canção. Não era a primeira vez que eu a escutava mas eu sempre a interpretei de outra maneira, que também se aplica, mas nunca desconfiei das intenções originais de quem escreveu. Da primeira vez que a ouvi, eu estava longe de casa, provavelmente dirigindo numa daquelas highways americanas e logo fui atingido pela tristeza da música e pela voz da cantora. A primeira impressão que tive é de que ela falava do envelhecimento dela e de um relacionamento amoroso que parecia estar acabando depois de muitos anos. Os versos podiam até ser lugares-comuns, mas a vocalista colocava o peso da voz dela, rouca e grave, despojada, de uma maneira que me deixou até desconfortável. A música seguia com expressões tipo "o tempo faz de você mais corajoso, as crianças envelhecem, e eu estou envelhecendo também" ou então: "eu tenho tido medo de mudanças, porque eu construí minha vida ao redor de você" ou "será que eu consigo lidar com as estações da minha vida?"...

E o tempo passou, anos, até que, hoje, eu estava aqui em casa desavisado, pensando na morte da bezerra, na idade, 41, no passado, no futuro etc, realmente melancolando. Eu estava mexendo no computador, procurando por vídeos meio sem pretensão. Minha filha estava, aos meus pés, concentrada em abrir um saco enorme de bichos de pelúcia que ela tem. E aí eu esbarro no vídeo de Fleetwood Mac com a cantora Stevie Nicks se preparando para cantar "Landslide". Ah, eu pensei, é aquela música bonitinha que eu ouvia lá em Atlanta!

O violão começou a introdução e , neste meio tempo, minha filha conseguiu finalmente tirar do saco um urso enorme, o que ela prontamente me chamou atenção para o feito dela, dizendo "oh oh", rindo e apontando para o bicho peludo. Tanta coisa se passou na cabeça nesses milésimos de segundo, entre aquela aparição de minha filha brincando no chão e a aproximação da cantora do microfone!

Para quem foi pai tão tarde, aquela cena era realmente um achado na vida, uma bela surpresa das mais incríveis, mas que trazem para um melancólico de carterinha e anuidades pagas um monte de sensações misturadas de paternidade, de eternidade, mas de finitude também. É uma mistura de querer que aquele momento dure para sempre, mas já sabendo que tudo aquilo vai passar, embora eu saiba que aquele sorriso inocente vai ficar congelado dentro de mim pra sempre, enquanto houver eternidade em mim.

Stevie Nicks finalmente chegou ao microfone e murmurou algo que me gelou o sangue, porque eu tive a impressão que minha filha é quem tinha falado! "Esta é pra você, pai". E então meu mundo foi desabando como na música que ela cantava, sobre uma avalanche de neve por morro abaixo. A música que eu sempre interpretei como sendo sobre uma mulher falando para o marido, na verdade, pelo menos naquele momento, era sobre uma Filha falando para um Pai! E que momento foi esse que eu fui achar esse vídeo! Eu nem tentei segurar as lágrimas porque era perda de tempo...A pequena aos meus pés achou pouco e soltou os bichos e subiu no meu colo para ouvir a música comigo, sempre sorrindo e apontando para tela. Será que ela estava querendo dizer "faço dela as minhas palavras" ? Eu não sei... Em todo caso, vou colocar as letras no original aqui embaixo, com o respectivo vídeo, para que outros tirem suas conlusões, enquanto eu vou continuar puxando essa angústia, em busca de respostas que nunca virão, eu sei, mas vou tentar aproveitar essa busca com uma cerveja bem gelada, que eu estou necessitado!

Landslide - Fleetwood Mac
I took my love, I took it down
Climbed a mountain and I turned around
I saw my reflection in the snow covered hill still the landslide brought me down
Oh, mirror in the skyWhat is love
Can the child within my heart rise above
Can I sail thru the changing ocean tides
Can I handle the seasons of my life
Well, Ive been afraid of changing cause Ive built my life around you
But time makes you bolder
Children get older
Im getting older too
Oh, take my love, take it down
Climb a mountain and turn around
If you see my reflection in the snow covered hills
Well the landslide will bring it down
If you see my reflection in the snow covered hills
Well maybe the landslide will bring it down


segunda-feira, agosto 07, 2006

O Rei de Chicago

A cena não era muito diferente de um desses nossos terreiros, só que a música era um daqueles blues lentos, rasgados. A banda tocava baixinho, todos com os olhos pregados no negro com a guitarra a frente. Os músicos faziam o melhor que podiam para reforçar as estruturas da música, para manter a casa em pé, mas a missão era dificílima! O rei de Chicago começava uma subida lenta e nervosa, crescendo em intensidade pelo braço da guitarra, ao que ele disparou um olhar vidrado para o lado, como que avisando que o santo iria baixar...

Eu estava na casa de amigos, assistindo vídeos. Eu tinha vários discos de Buddy Guy, o herdeiro de Muddy Waters em Chicago, mas naquela época eu ainda não tinha visto aquele louco em ação. Já íamos bem altos de cerveja e coquetéis "molotov" de tequila, e um cinzeiro abarrotado de pontas de Malrboros, mas aquele negão, que portava uma Fender preta com bolinhas brancas, estava muito mais doido do que nós juntos!

Ele chegou ao fim do braço da guitarra e empacou num grupo de notas que começou a tocar com os olhos fechados e a tremer-se todo usando a mão direita para atacar as cordas freneticamente e nisso eu ia levando meu copo à boca mas a mão parou congelada no ar e a língua seca aguardando a cerveja e eu não conseguia tirar os olhos do homem entrando em transe tresloucado que aparentemente tinha deixado o corpo ali tocando mas que o espírito na certa já ia sendo carregado por alguma entidade que ele tinha provocado invocado quando ouvi um grito terrível vindo da minha direita Ahhhhhhh que quase carrega minha alma junto e um baque surdo com meu amigo de pernas pra o ar gritando "chamem uma ambulância !!!"

Alguns anos depois, já em Atlanta, num belo sábado à tarde, estou no metrô, trem lotado de gente bonita, muitos cantando, rindo, tomando umas, todos se dirigindo ao Piedmont Park para o Midtown Festival: 3 dias de música, 10 palcos, e uma centena de atrações, tudo por módicos $15 dólares por dia! Eu não sabia para quais shows aquela multidão estava indo. Eu só sabia que tinha que entrar no parque, e me dirigir ao primeiro palco à direita, ver o cara que tinha influenciado não só Eric Clapton e Stevie Ray Vaughan, mas principalmente Jimi Hendrix: Buddy Guy!

Consegui ficar perto do palco, mas um pouco na lateral, perto do quiosque da cerveja, que eu não tinha coragem de enfrentar aquela parada no seco. Ele entrou com a guitarra e a língua afiadas, e disparou uma meia dúzia de petardos, solou feito um insano, quebrou logo uma corda, que ele já faz de propósito, e era todo mundo gritando "é isso mesmo e bote pra f..." , e tome cerveja sendo emborcada como se fosse água, gente gritando "filho da p...", eu inclusive, em português, inglês e espanhol pra não deixar dúvidas, e a interação que ele faz com o público, é até heresia dizer, nem B.B King consegue! Ele manda a banda tocar baixinho, enquanto conversa com a audiência, faz perguntas, e ouve gritos lá de baixo, dá gargalhadas, saltinhos pra trás, mais gritaria, e mais impropérios, e ele conta, ou canta, estórias de traições sofridas, e o povo responde esculhambando a adúltera como se a conhecessem, ou completando as letras, ou ele mandava o público fazer silêncio com a mão direita, enquanto solava com esquerda, e por aí o show seguia, impecável.

Quando falei na língua afiada não foi só em referência ao cantar, mas ele também disparou contra rádios, gravadoras, produtores, e cabia mais gente, que não ouviam, não apoiavam as tradições negras do Blues, e que nem B.B King tinha espaço nas rádios, ou criticava a juventude negra que só queria saber de Hip-Hop, e não era à toa, com aquela maioria arrasadora de brancos na platéia...

No fim, como não poderia deixar de ser, ele saiu solando com a guitarra sem fio pelo meio da multidão enlouquecida, o que torna os shows dele tão inesquecíveis, com a chance de ver o mestre cara-à-cara! Vou também guardar pra sempre aquela imagem dele indo bater nas portas dos banheiros públicos! Ele conseguiu cortar pelo meio da multidão, e foi parar nos banheiros, que ficavam a uns bons cem metros do palco. Era hilário ver os caras, ou mulheres, abrirem a porta e se depararem com o negão solando na frente deles, o que era caso pra se mijarem de novo, dessa vez nas calças!

Sim, naquela noite fatídica do vídeo, pulamos todos em socorro do amigo, que estava por trás de uma poltrona, como diz o povo, "estatelado" no chão, a mão suspensa no ar, com o copo de tequila cheio, coisa de profissional, sem derramar uma gota! O palhaço tinha tentando simular uma queda por causa do solo de Buddy, mas o "nível de sangue no álcool" acabou derrubando-o de fato, e ficamos ali todos no chão sem conseguir parar de rir!