segunda-feira, julho 17, 2006

Aquela Menina do Texas

Eu estava ouvindo música, deitado no sofá lá de casa. Talvez estivesse sonhando com uma cantora de Country Blues do Texas. No sonho ela cantava só para mim. Ela também gemia e gritava do fundo da alma, e meu coração ia batendo junto com o dela. De repente acordo com a porta abrindo-se, e minha mãe entra como uma avalanche em direção ao toca-discos. Eu mal conseguia entender o que ela pronunciava, já após ela ter desligado o som, perguntando se eu estava louco. Ela falava algo como "dava pra ouvir da outra rua", e do "respeito aos vizinhos que eram idosos". Finalmente ela disparou contra a cantora do disco, perguntando "o que é que aquela louca tinha, que parecia estar morrendo!".
Era uma vez uma menina feia que morava em Port Arthur, no Texas. Ela se chamava Janis Lyn Joplin. As biografias dizem que ela era uma menina tímida e muito inteligente. Ela era leitora voraz, e também pintava muito bem. Mas o que ela mais gostava era de cantar. Logo cedo começou a frequentar os bares da cidade, onde cantava por qualquer trocado, ou pela bebida. Nos tempos de universidade, saiu da pequena cidade natal e foi para Austin, uma cidade grande, e a vida começou a mudar radicalmente. Ela começou a se afastar da vida pacata de cidade pequena, e começou a experimentar com drogas pesadas, especialmente heroína.
Ela ainda tentou voltar para casa, e talvez seguir aquele caminho "normal" de casar-se e ter filhos, mas a coisa não funcionou. Nesse meio tempo apareceu uma oportunidade de fazer um teste em San Francisco, para uma banda local. A menina doce e sensível foi logo cair no meio da confusão e agito dos anos 60: lutas pelos direitos dos negros, Vietnan, guerra fria, os beatniks, hippies, tudo somado a muito LSD e Heroína. Ela foi por ali trilhando o caminho dela, até ao dia em que conseguiu uma chance de cantar no Monterrey Pop Festival de 1967...De repente o mundo acordou e viu uma menina de cabelos longos, que nem era tão feia assim, abrir as portas de céu e inferno com uma voz que chocou a todos! Daquele verão de 1967 até o dia 4 de Outubro de 1970, foram três anos fulminantes, onde ela alcançou o estrelato, foi aclamada pelo mundo, e morreu num quarto de hotel, aos 27 anos, numa overdose de heroína.
Eu nem queria escrever essas notas biográficas, que eu não começei com essa intenção. Mas tenho andado com a idéia de inserir algo tipo "momento cultural" no meio dos textos, caso encontre um leitor desavisado, ou leigo no assunto. O motivo de começar a escrever hoje era o de encontrar uma resposta. Na verdade, nunca acredito que vou achar resposta alguma, apenas por escrever, mas acabo escrevendo, naquela de "crer contra a esperança". A idéia era responder à minha mãe, uns bons vinte anos depois, algo que nem tentei na época: "o que é que aquela louca tinha, que parecia estar morrendo".
Já se foram muitas audições, leituras, e bebedeiras, tentando encontrar nas entrelinhas daquela nota biográfica acima, onde é que aquela menina doce do Texas foi buscar aquela dor. Eu sei que ela teve umas experiências ruins na escola, onde ela chegou a ser chamada "o MENINO mais feio do colégio", mas será que isso foi um estopim tão grande assim? Alguém poderia citar as drogas, mas quem a viu tocando nos botecos antes do estrelato, e das drogas, diz que ela nunca mais cantou tão bem...Também não acredito que drogas "criem" algo novo que não está dentro de você. Elas podem até maximizar, ou destruir de vez, o talento, mas não tiram de dentro o que você não tem.
Espera aí que tá chegando uma idéia! Será que ela não era algum tipo de receptor ultra-sensível da época dela? Além dos problemas da guerra, havia aquela questão que tava "pegando", que era a luta dos negros, que ainda eram segregados. Não teria a menina branca do Texas tomado as dores, ao ponto de se tornar um deles? Ela não só cantava música negra, mas sempre foi envolvida na luta pelo fim do racismo, e o negócio na época era sério e violento, Martin Luther King que o diga. Se ela queria ser sincera ao cantar Blues, ela talvez achasse que tinha que ser um deles, o máximo que ela pudesse, ao menos no sentimento. Nunca uma branca conseguiu cantar Blues do jeito que ela cantou, com tanta dor e força. Já é um chavão dizer mas ela foi a cantora branca mais negra de todos os tempos. Às vêzes foi até mais negra do que as negras, quando gravou "Summertime", um clássico da música americana que, embora tivesse sido composta por um branco, contava a estória de uma ama negra que ninava um bebê branco. Muitas já tinham gravado mas, depois de Janis, poucas têm se aventurado a tentar de novo.
Janis também incorporou os sofrimentos de ser mulher, tudo com um conhecimento de causa absurdo para alguém tão jovem. Ela parecia uma anciã quando chegava perto de um microfone. Ela também tinha seus momentos alegres, e sabia passar isso ao público. A risadinha marota que ela dá no fim da faixa "Mercedes Benz", uma das últimas da vida dela, ainda é uma das coisas mais gostosas já gravadas.
Eu confesso que, hoje em dia, tenho ouvido pouco Janis, porque ela toda vez me acerta uma veia lá dentro que acaba me levando a beber mais do que eu devo. Eu lembro um dia em que liquidei umas dez cervejas grandes, que não eram brincadeira, tipo "bock", enquanto assistia a um vídeo dela, e no fim fiquei ali numa cadeira de balanço, chorando feito menino...
Resisti à tentação de mostrá-la hoje cantando "Summertime", ou "Ball and Chain", que estarreceu o mundo em Monterrey. Você podem ir no youtube.com e assistir lá. Queria deixá-la no auge, cantando "Maybe", uma das minhas favoritas. Também no vídeo, um baixista que gosto muito, Brad Campbell, que tomou um "chá de sumiço" após a morte dela, mas que sempre tenho como referencial ao tocar Blues ou Rock. Sing the Blues sweet girl!
Um dia minha mãe leu um artigo sobre Janis numa revista. Ela lembrou que eu tinha uns discos dela na estante...Só por curiosidade, ela foi até lá dar uma olhada...Nesse momento eu estava descendo de um ônibus lá perto. Quando eu vinha me aproximando de casa, ouvi uma voz familiar cantando nas alturas de meu toca-discos...Ao entrar em casa me deparo com minha mãe, deitada no mesmo sofá que eu gostava de ouvir música...Ela me olhou ainda com algumas lágrimas nos olhos, e... me pediu perdão...

4 comentários:

Anônimo disse...

O remate desta sua crônica mostrou como o mágico é algo que realmente existe e como é belo. O pedido de desculpas de sua mãe, a curiosidade dela mostram ser o profundo no receptáculo deste texto. Foi isso que mostrou-se culminante para mim e provavelmente você deve entender o porquê disso.

Vale lebrar de sua observação a respeito da "risadinha marota que Joplin dá no fim da faixa "Mercedes Benz". Muitos pensariam como sendo uma risadinha qualquer, algo apenas engraçado, mas você, você como sempre consegue ver o segundo sentido das coisas nas atitudes das pessoas. É isso que faz minha admiração por você, grande Roberto Leite.

Agora a Joplin está dizendo que tudo que e fez foi válido e que viver tem que ser com a alma, tem que ser intenso e que música não se sente de qualquer jeito.

Bjos nesse coração.

Robelix disse...

Merci beaucup, madmoisele Tournesol Surréaliste!

Anônimo disse...

Se não fosse sua mãe e se não fosse a mulher que ela é, as profundas dos infernos seriam pequenas para minhas pragas e impropérios. Vindo de D. Mama, não me surpreende a redenção. No máximo caberia um "demorou", com um sorriso maroto e mesmo assim ficaria com medo do trôco. Sobre minha dama, Janis de Sousa, continuamos em lua de mel que já dura 30 anos.

Pat disse...

E eu inocentemente passeando pelo seu Blog, cliquei nesse texto, sem me me ligar que era "Aquela menina do Texas". Eu também não entendo o sofrimento de onde vinha aquele sofrimento, li a Biografia dela de Myra Friedman e vou ler de novo por esses dias!Eu simplesmente a amo, antes eu não entendia o porque não gostava dela, mas acho q é porque eu era muito pequena pra saber....Janis Joplin, 4 ever!
Times keeps movin'on....friends, they turn away....I keep movin'on....!