terça-feira, julho 12, 2005

Crítica a um Jovem Autor


Velho Manucrito

"Era uma vez um menino muito alegre. Era pobre mas muito feliz porque tinha muitos amigos ricos. De cada um recebia dez centavos por dia. Depois de alguns dias seu pai disse que um ladrão tinha fugido da cadeia. Certos dias depois ouve-se um tiro e então o menino correu até no chão. Seu pai ferido, mas muito ferido. O que será ter acontecido ao pai do menino? O ladrão! Grita o menino enfurecido. Então o menino com a arma de seu pai...
O Menino chega a casa do ladrão. Manda chumbo BAM, BAM. Aquele menino! BAM,BAM,BAM. Então a polícia ouve os tiros. Muito bem rapaz. Mãos ao alto! Você fez um bom serviço menino. Será recompensado pelo comandante. Finalmente o menino vem para sua casa com uma boa novidade. Então o menino viveu muito mais feliz do (que)já vivia."

Antes de partirmos da casa, minha sobrinha me apareceu com esse texto acima: "tio olha o que eu achei nas coisas de vovó". Nas mãos ela tinha uma folha de caderno amarelado, com uns garranchos rabiscados com algum tipo de hidrocor verde. "O menino Alegre", anunciava o título sublinhado. Demos umas boas risadas lendo essa primeira "obra-prima", escrita quando eu tinha uns 7 anos de idade, e bote tempo que esse papel passou guardado! Ela achou que a melhor parte do texto foi justamente quando o narrador diz "Aquele menino", e ela mal conseguia parar de rir. Tudo bem pode rir. Mas depois resolvi dar uma olhada nessa cria que estava largada numa gaveta por uns bons 30 anos, e fazer um crítica ao conto do jovem autor. Descobri muitas coisas obscuras, e no mínimo dignas de repreensão nesse garoto, e olhe que eu nem vou criticar a técnica, mas o conteúdo moral e ético da estória que o pirralha escreveu. Vejamos:

  • O menino era sustentado por amigos ricos que lhe davam 10 centavos por dia. Isso já parece um pouco estranho, principalmente se formos ver quanto valia 10 cents naqueles idos de 1970 (mesadão?). No decorrer da estória é que esse assunto vai ficar mais claro.
  • O pai era muito informado sobre páginas policiais, ou trabalhava no ramo, pois sabia da fuga de um réles ladrão, que aparentemente não era famoso, senão os seus feitos seriam citados. E porque a importância de dizer isso ao menino?
  • Depois de alguns dias o pai é baleado em casa. O menino chega a ouvir o tiro mas quando chega encontra apenas o pai ferido. Ele não viu quem foi, daí a pergunta do narrador "o que será ter acontecido ao pai do menino". De repente ele chega à conclusão que o ladrão que tinha fugido da cadeia era o culpado! Mas como ele chegou a essa conclusão? Eu sinceramente não sei, mas quero crer que houve alguma informação em "off" por parte do pai dele, e que não nos foi relatada. Então o ladrão era alguém que os conhecia, e que por um motivo ou outro queria matar o pai do menino (acerto de contas?). Seria o pai do garoto envolvido com esse tipo de gente? Ou seria ele um policial que mandou o cara para a cadeia, já que o narrador não explica no texto?
  • Agora vem a parte que mais me intriga: o menino pega a arma do pai (quer dizer que ele tinha uma arma afinal, hein!), e vai DIRETO PARA A CASA DO BANDIDO! Espera aí! O menino nem sequer chamou o socorro para o pai, e já se despencou em direção à casa do suposto bandido (que eu já desconfio não ser o único vilão nessa estória aparentemente inocente). Quer dizer que ele sabia onde o cara morava? Talvez morasse na mesma vila ou comunidade, quem sabe, mas ele foi direto para lá.
  • De agora em diante vem um mar de atitudes repugnantes e totalmente contrárias aos direitos humanos: a) o menino, que até agora não parece ter provas suficientes, entra na casa do suposto ladrão e o executa com cinco tiros (admirável para esse alter-ego de 7 anos de idade!), com o elogio citado acima "aquele menino" entre o segundo e terceiro tiro! b) Em seguida chega a polícia, que mais uma vez reforça o elogio, usando dessa vez jargão de esquadrões de extermínio, do tipo você fez um "bom serviço"! c) O "Serviço" foi tão bem feito que até o comandante vai recompensá-lo por ter executado alguém sem ter-lhe dado direito a um julgamento justo e direito de defesa. Essa foi boa!
  • Enfim esse pequeno monstro social retorna a sua casa mais feliz do que já tinha sido (palavras dele). Após saciar sua sede num banho de sangue, ainda tem o seu trabalho reconhecido pelos que representam o Estado e que deveriam ter protegido o outro que morreu.
  • Assim começa a ficar mais claro essa estória de ter uma mesada do início do texto, onde provalmente essa criaturinha inocente deveria providenciar fumo ou cocaína aos filhinhos-de-papai, ou era apenas um simples caso de extorsão mesmo...O menino alegre, pois sim!