As mãos deles pareciam ter o mesmo tratamento, o mesmo histórico. Fica até parecendo um estereótipo. Elas começavam desde cedo a serem curtidas nas plantações e no sol. Muitas construiam estradas de asfalto e de ferro. Posteriormente, elas enrijeciam nas fábricas de aço, ou de carros. Eram mãos fortes, negras, de pele grossa e calejadas, acostumadas que eram ao catar do algodão, e ao levantamento de sacas. Ainda na adolescência, já então nas fábricas e usinas, muitos meninos começavam a manejar ferramentas pesadas, passando anos batendo no ferro incandescente. Mas, nos pequenos intervalos daquela vida duríssima, eles tentavam, desengonçadamente, tocar um instrumento musical...
Nisto o relato daqueles negros americanos também é muito parecido: eles ficavam horas sentados ao pé do rádio, ouvindo as estações dos segregados americanos, de onde captavam nas ondas todo tipo de manifestação musical negra: "Spirituals", que eram os hinos mais lentos, ou "Gospel", também religioso, mas que envolvia mais ritmo, ou a "música pagã", chamada "Blues", oriunda das "casas de baixa reputação", dos bares, das plantações, ou das ruas. Os garotos ficavam ali, tentando adestrar os dedos duros, provavelmente de unhas grandes e com terra, nos violões velhos de algum parente. E, de repente, como num milagre, aqueles meninos negros começavam a tirar uma música fortíssima, e bela, de dentro dos violões, ou das pianolas velhas, ou das gaitinhas desafinadas...
Esse texto de hoje foi inspirado nas mãos de um guitarrista de Blues, chamado Albert Collins, o rei da guitarra Fender Telecaster.
Enquanto o vídeo tocava, meus olhos estavam fixos nas mãos dele. Eu não sei o que me levou a ficar tão concentrado nas mãos. Geralmente quando um contrabaixo, que é meu instrumento, aparece em cena, meu olhar vai direto para as mãos do baixista, para observar a técnica, mas ali estava um cara tocando guitarra... Mas afinal acho que foi a técnica mesmo, ou a ausência dela, que me chamou a atenção. Os dedos eram desproporcionais ao instrumento que ele manuseava: muito fortes e longos, e carregados de anéis. Na mão direita, que ele usava para, literalmente, atacar as notas, não havia uma palheta. O que havia era um dedo indicador dando patadas nas pobres cordas de aço.
Eu então comecei uma viagem ao passado, tentando rastrear o histórico daquelas mãos, e do homem que as usava para tocar aquela guitarra Telecaster como ninguém. Ali no vídeo estava um músico maduro e no auge da carreira que, infelizmente, estava para ser encerrada, com um câncer no fígado, em 1993, aos 61 anos. Mas voltei correndo no tempo, antes que ele parasse de tocar, e partisse. A viagem tinha que ser rápida, e só deu tempo de ver poucas imagens, um pouco amareladas do tempo:
Numa imagem os pais estão saindo com ele da maternidade em Houston, Texas, em 1933, e se dirigindo à fazenda onde eles trabalhavam.
Eu vi o menino Albert aos 11 anos, tentando aprender as músicas de Lightnin' Hopkins, seu primo distante, no rádio, como também as canções de John Lee Hooker, o rei do boogie-woogie.
Num instante e ele já está abandonando a escola no meio do ginásio, para poder trabalhar.
Eu vi Albert nos anos 50/60, vibrando nas noites da América, já com sua banda, tocando nos guetos, e gravando seus primeiros discos, que fizeram um sucesso modesto nas rádios negras.
Mas não! Ahh, essa não! Meus olhos encheram d'água, ao vê-lo parar completamente de tocar guitarra, aos 40 anos, minha idade, no ostracismo dos anos 70. Ele está saindo de casa agora, numa manhã fria, dirigindo-se ao seu emprego braçal na construção civil. Cacete, como eu queria ser Deus agora, e evitar essa cena a qualquer custo! Foi impossível não pensar em Cartola, nosso gênio brasileiro, guardando carros numa rua qualquer, isso depois de ter feito sucesso...Essa foi a imagem em que mais me demorei, e quase não volto a tempo de vê-lo tocar a última estrofe...
Espera aí, que ano é esse? 1985, e que alívio! O cara voltou a gravar, convencido pela espôsa, e por Neil Diamond, o rock-pop star, que anos antes teve que assistir, incrédulo, Albert chegar com os outros trabalhadores, para reformarem a sua mansão em Hollywood...Mas agora ele está recebendo um Grammy e, aos 53 anos, tem finalmente o trabalho reconhecido.
Mas o destino não iria deixá-lo levar uma vida boa por muito tempo: 1993, e essa é a última imagem dele que eu tenho, antes de voltar e vê-lo tocar o último acorde. Ele está no médico, quando recebe a notícia fulminante de que está com câncer, em estado avançado. O médico lhe dá mais 4 mêses de vida, e pronto. Não, eu não consigo ver o que Albert Collins está sentindo, ou pensando. Ele certamente era experiente, e bem versado nas viradas dessa vida. Sim, acredito que ele encarou de frente, forte como ele era, e só sei que ele saiu daquele consultório e foi viver mais 6 mêses, em cima de um palco, com as mãos cheias de anéis, tocando uma guitarra Telecaster velha como nenhum outro jamais tinha tocado!
A lição que ele deixa como instrumentista não pode ser esquecida, a lição que eu aprendi observando as mãos dele, e a música de outros grandes. Além de saber aplicar a experiência de vida nas notas que ele toca, ele também habita aquele limbo que só os grandes mestres têm acesso. Nesse espaço que ele flui não existe técnica, ou pelo menos aquilo que nós chamamos de técnica. Ele habita um mundo às vêzes atemporal, atonal, cru, e que nós, com muitas vêzes treinamento erudito, queremos "consertar", dar uma "melhorada", uma "ajustada" e, meu Deus, que ingenuidade, ou ignorância, não existe nada lá a ser mudado! A música que sai dos dedos dele é Blues com letra maíscula, em cada nota, cada grunhido ou riso, e é inimitável!
Notas do Clip: E quem disse que Blues tem que ser triste? Há uma vasta gama de estilos, e de posturas dentro daquilo que chamamos de Blues. Na maioria das vêzes, a postura é de desafio em face das dificuldades, e nunca um entregar-se à dor. O humor sempre esteve presente no Blues, e tem sido uma arma super eficiente contra as mazelas desta vida. Os caras, e mulheres também, simplesmente não se rendem a ficar choramingando por causa das dificuldades, mas conseguem dar um boa gargalhada da própria desgraça! No caso desse clip hoje o assunto é a bebida, que é um tema conduzido com maestria por Albert Collins. A música conta a estória do povo recriminando, dizendo "você está alto e vive bêbado o tempo todo!" ("but you're so high, stay drunk all the time"), ao que ele responde "mas eu não estou bêbado. Eu estou apenas bebendo!" ("I ain't drunk I'm just drinking") O final é gozadíssimo, quando ele começa a contar quantas cervejas ele realmente tomou: 30! Mas ele enrola a língua e não dá o braço a torcer: "I ain't drunk, I'm just drinking!" . Tin-tin, Mr Collins!!!