sábado, julho 29, 2006

O Rei da Telecaster

Blues é aquele tipo de música tocada com longos dedos negros, e cheios de anéis...


As mãos deles pareciam ter o mesmo tratamento, o mesmo histórico. Fica até parecendo um estereótipo. Elas começavam desde cedo a serem curtidas nas plantações e no sol. Muitas construiam estradas de asfalto e de ferro. Posteriormente, elas enrijeciam nas fábricas de aço, ou de carros. Eram mãos fortes, negras, de pele grossa e calejadas, acostumadas que eram ao catar do algodão, e ao levantamento de sacas. Ainda na adolescência, já então nas fábricas e usinas, muitos meninos começavam a manejar ferramentas pesadas, passando anos batendo no ferro incandescente. Mas, nos pequenos intervalos daquela vida duríssima, eles tentavam, desengonçadamente, tocar um instrumento musical...
Nisto o relato daqueles negros americanos também é muito parecido: eles ficavam horas sentados ao pé do rádio, ouvindo as estações dos segregados americanos, de onde captavam nas ondas todo tipo de manifestação musical negra: "Spirituals", que eram os hinos mais lentos, ou "Gospel", também religioso, mas que envolvia mais ritmo, ou a "música pagã", chamada "Blues", oriunda das "casas de baixa reputação", dos bares, das plantações, ou das ruas. Os garotos ficavam ali, tentando adestrar os dedos duros, provavelmente de unhas grandes e com terra, nos violões velhos de algum parente. E, de repente, como num milagre, aqueles meninos negros começavam a tirar uma música fortíssima, e bela, de dentro dos violões, ou das pianolas velhas, ou das gaitinhas desafinadas...
Esse texto de hoje foi inspirado nas mãos de um guitarrista de Blues, chamado Albert Collins, o rei da guitarra Fender Telecaster.
Enquanto o vídeo tocava, meus olhos estavam fixos nas mãos dele. Eu não sei o que me levou a ficar tão concentrado nas mãos. Geralmente quando um contrabaixo, que é meu instrumento, aparece em cena, meu olhar vai direto para as mãos do baixista, para observar a técnica, mas ali estava um cara tocando guitarra... Mas afinal acho que foi a técnica mesmo, ou a ausência dela, que me chamou a atenção. Os dedos eram desproporcionais ao instrumento que ele manuseava: muito fortes e longos, e carregados de anéis. Na mão direita, que ele usava para, literalmente, atacar as notas, não havia uma palheta. O que havia era um dedo indicador dando patadas nas pobres cordas de aço.
Eu então comecei uma viagem ao passado, tentando rastrear o histórico daquelas mãos, e do homem que as usava para tocar aquela guitarra Telecaster como ninguém. Ali no vídeo estava um músico maduro e no auge da carreira que, infelizmente, estava para ser encerrada, com um câncer no fígado, em 1993, aos 61 anos. Mas voltei correndo no tempo, antes que ele parasse de tocar, e partisse. A viagem tinha que ser rápida, e só deu tempo de ver poucas imagens, um pouco amareladas do tempo:
Numa imagem os pais estão saindo com ele da maternidade em Houston, Texas, em 1933, e se dirigindo à fazenda onde eles trabalhavam.
Eu vi o menino Albert aos 11 anos, tentando aprender as músicas de Lightnin' Hopkins, seu primo distante, no rádio, como também as canções de John Lee Hooker, o rei do boogie-woogie.
Num instante e ele já está abandonando a escola no meio do ginásio, para poder trabalhar.
Eu vi Albert nos anos 50/60, vibrando nas noites da América, já com sua banda, tocando nos guetos, e gravando seus primeiros discos, que fizeram um sucesso modesto nas rádios negras.
Mas não! Ahh, essa não! Meus olhos encheram d'água, ao vê-lo parar completamente de tocar guitarra, aos 40 anos, minha idade, no ostracismo dos anos 70. Ele está saindo de casa agora, numa manhã fria, dirigindo-se ao seu emprego braçal na construção civil. Cacete, como eu queria ser Deus agora, e evitar essa cena a qualquer custo! Foi impossível não pensar em Cartola, nosso gênio brasileiro, guardando carros numa rua qualquer, isso depois de ter feito sucesso...Essa foi a imagem em que mais me demorei, e quase não volto a tempo de vê-lo tocar a última estrofe...
Espera aí, que ano é esse? 1985, e que alívio! O cara voltou a gravar, convencido pela espôsa, e por Neil Diamond, o rock-pop star, que anos antes teve que assistir, incrédulo, Albert chegar com os outros trabalhadores, para reformarem a sua mansão em Hollywood...Mas agora ele está recebendo um Grammy e, aos 53 anos, tem finalmente o trabalho reconhecido.
Mas o destino não iria deixá-lo levar uma vida boa por muito tempo: 1993, e essa é a última imagem dele que eu tenho, antes de voltar e vê-lo tocar o último acorde. Ele está no médico, quando recebe a notícia fulminante de que está com câncer, em estado avançado. O médico lhe dá mais 4 mêses de vida, e pronto. Não, eu não consigo ver o que Albert Collins está sentindo, ou pensando. Ele certamente era experiente, e bem versado nas viradas dessa vida. Sim, acredito que ele encarou de frente, forte como ele era, e só sei que ele saiu daquele consultório e foi viver mais 6 mêses, em cima de um palco, com as mãos cheias de anéis, tocando uma guitarra Telecaster velha como nenhum outro jamais tinha tocado!
A lição que ele deixa como instrumentista não pode ser esquecida, a lição que eu aprendi observando as mãos dele, e a música de outros grandes. Além de saber aplicar a experiência de vida nas notas que ele toca, ele também habita aquele limbo que só os grandes mestres têm acesso. Nesse espaço que ele flui não existe técnica, ou pelo menos aquilo que nós chamamos de técnica. Ele habita um mundo às vêzes atemporal, atonal, cru, e que nós, com muitas vêzes treinamento erudito, queremos "consertar", dar uma "melhorada", uma "ajustada" e, meu Deus, que ingenuidade, ou ignorância, não existe nada lá a ser mudado! A música que sai dos dedos dele é Blues com letra maíscula, em cada nota, cada grunhido ou riso, e é inimitável!
Notas do Clip: E quem disse que Blues tem que ser triste? Há uma vasta gama de estilos, e de posturas dentro daquilo que chamamos de Blues. Na maioria das vêzes, a postura é de desafio em face das dificuldades, e nunca um entregar-se à dor. O humor sempre esteve presente no Blues, e tem sido uma arma super eficiente contra as mazelas desta vida. Os caras, e mulheres também, simplesmente não se rendem a ficar choramingando por causa das dificuldades, mas conseguem dar um boa gargalhada da própria desgraça! No caso desse clip hoje o assunto é a bebida, que é um tema conduzido com maestria por Albert Collins. A música conta a estória do povo recriminando, dizendo "você está alto e vive bêbado o tempo todo!" ("but you're so high, stay drunk all the time"), ao que ele responde "mas eu não estou bêbado. Eu estou apenas bebendo!" ("I ain't drunk I'm just drinking") O final é gozadíssimo, quando ele começa a contar quantas cervejas ele realmente tomou: 30! Mas ele enrola a língua e não dá o braço a torcer: "I ain't drunk, I'm just drinking!" . Tin-tin, Mr Collins!!!


segunda-feira, julho 24, 2006

Johnny, o Albino do Texas

But he could play guitar like ringing a bell...
(Em "Johnny B. Good" - Música clássica do século XX)

A platéia estava toda de pé, da última fila ao gargarejo, batendo palmas e pedindo bis. Os seguranças tentavam em vão fazer-nos retornar às cadeiras, mas nem dávamos atenção a eles. De repente as luzes apagaram-se, e o velho mago retornou por detrás das cortinas, dessa vez com sua guitarra "V shape", e o slide no dedo. Ele sentou-se quase ao alcance das nossas mãos, e agradeceu com o mesmo sorriso tímido do menino de 13 anos, que dizia a todos que um dia tocaria com Muddy Waters. Ele contou até quatro, e a última coisa que me lembro foi que o mundo desabou, não por causa das forças da natureza, mas desconstruido no contato do aço das cordas com o gargalo de um tubo de whiskey...

Atlanta, numa tarde de outono, em meados de 2004. Vinha do dentista, por um caminho que nunca usava por causa do trânsito terrível. De repente dei uma olhada à minha esquerda, e meus olhos pairaram sobre os letreiros do teatrinho, anunciando Johnny Winter, o guitarrista albino do Texas, em uma semana...

O show foi numa noite de quarta-feira e, já no bar do teatro, conheci uma daquelas figuras que sempre encontramos nesses tipos de eventos: ele era um "senhor", com um certo ar de louco, de seus 60 anos de idade, de botas, calças jeans e jaqueta dos "Hell's Angels". Ele logo engrenou um papo com a gente sobre os bons tempos dos anos 60 e 70, quando assistiu a alguns "showzinhos" básicos, tipo Led Zeppelin e Cream, até Stevie Ray Vaughan nos 80! Eu já estava acostumado àquele tipo de relato, e já nem ficava mais descrente, tamanho o número de pessoas que eu tinha conhecido, e que contavam as mesmas estórias de Rock e Blues, e shows alucinantes. Ele nos contava que tinha se aposentado da indústria automotiva, e agora só tocava guitarra nas jams da cidade... Um plano de aposentadoria nada mal pra quem já tinha visto tanto!

Fui ao show com um casal amigo, e nos sentamos na terceira fila. Ficamos ali nos revezando na busca das cervejas, e assistindo ao show de abertura. Eu tentava "doutrinar" meus amigos contando estórias de Johnny, de como ele tinha colocado o nome nas enciclopédias de Blues e Rock, desde Woodstock até produzir e tocar com Muddy Waters, o rei de Chicago, que o chamava de filho. Em 40 anos de carreira, ele continuava fiel às raízes, sem nunca se vender aos modismos.

Enfim a banda entrou e começou a botar a casa abaixo. No meio da música ele surgiu, aquela figura fantasmagórica, tatoos por todo o corpo, cabelos longos e branquíssimos, um chapéu enorme, e empunhando sua amiga guitarra "Firebird". Para minha surpresa, ele precisava de um guia para chegar até o microfone, e pensei em voz alta: "Uau, o cara já entrou carregado!", ao que meu amigo disparou com um olhar de reprovação: "pelo amor de Deus, Roberto, o cara é cego!". Caramba, aquela foi terrível, mas eu não sabia que ele era "legalmente cego", como dizem, de tão pouco que enxergava!

Mas que diferença fazia, se ele era cego, ou não, se os dedos voavam a todo lugar que ele mandava? Ele manteve a platéia hipnotizada durante todo o show, especialmente nos blues mais lentos, onde ele ia buscar grunhidos que Deus ou o diabo sabiam onde, e solos apocalípticos. O velho Merlin, apesar de certa fragilidade, continuava senhor absoluto da guitarra, e cada vez mais eu ia afundando na cadeira, de cabelo em pé, amaldiçoando a idéia de ter sentado, em vez de ter ficado perto do bar...

Durante o show, numa daquelas esquisitices nos EUA, a platéia foi super comportada, e todos ficaram confortavelmente sentados. Quando tudo parecia terminado, já demorando muito pra um bis, alguém teve uma idéia brilhante: um louco, de botas, calças jeans e jaqueta dos "Hell's Angels" disparou em direção ao gargarejo, batendo palmas e gritando de uma maneira ensandecida! Meus amigos me olharam com aquele ar de perplexidade, como quem esperando por explicações, ou seriam instruções... Ao que eu nem pestanejei: "sigam aquele doido!". Num segundo estávamos saltando das cadeiras atrás do cara! Podiam até acusar os brasileiros de terem bagunçado, mas não fomos nós que começamos!

Após o show ainda fomos a um boteco lá perto, comemorar a noite, felizes por termos visto de perto o albino Johnny Winter, que entrou para a história porque, pelo menos para ele, tocar guitarra era algo tão fácil quanto tocar um sino!

Notas do Clip: Eu sempre gosto de deixar o pessoal bonito na fita aqui. Atualmente, Johnny Winter está com uns bons 60 e tantos anos. Ele está praticamente cego e a vida que ele levou ao pé da letra, de sexo, rock'n roll e drogas, fez estrago no mago da guitarra, apesar de ele ainda soar excelente. Mas no clip ele está ainda novinho, mais ou menos na época em que ele gravou "The Progressive Blues Experiment", uma jóia do Blues/Rock, por volta de 1969. A banda é composta do baterista Uncle John Turner, que por sinal está "travadíssimo", certamente devido ao uso de substâncias abusivas, bem normal na época; Edgar Winter, o mano albino no piano e, por último, o baixista Tommy Shanon, novinho de ainda usar fraldas, que viria a ficar famoso acompanhando Stevie Ray Vaughan na banda lendária "Double Trouble". A música "Johnny B. Goode" foi escrita por outro monstro do Rock, Chuck Berry, um dos pais do Rock'n Roll, mas que se aplica perfeitamente ao albino que veio do Texas!

segunda-feira, julho 17, 2006

Aquela Menina do Texas

Eu estava ouvindo música, deitado no sofá lá de casa. Talvez estivesse sonhando com uma cantora de Country Blues do Texas. No sonho ela cantava só para mim. Ela também gemia e gritava do fundo da alma, e meu coração ia batendo junto com o dela. De repente acordo com a porta abrindo-se, e minha mãe entra como uma avalanche em direção ao toca-discos. Eu mal conseguia entender o que ela pronunciava, já após ela ter desligado o som, perguntando se eu estava louco. Ela falava algo como "dava pra ouvir da outra rua", e do "respeito aos vizinhos que eram idosos". Finalmente ela disparou contra a cantora do disco, perguntando "o que é que aquela louca tinha, que parecia estar morrendo!".
Era uma vez uma menina feia que morava em Port Arthur, no Texas. Ela se chamava Janis Lyn Joplin. As biografias dizem que ela era uma menina tímida e muito inteligente. Ela era leitora voraz, e também pintava muito bem. Mas o que ela mais gostava era de cantar. Logo cedo começou a frequentar os bares da cidade, onde cantava por qualquer trocado, ou pela bebida. Nos tempos de universidade, saiu da pequena cidade natal e foi para Austin, uma cidade grande, e a vida começou a mudar radicalmente. Ela começou a se afastar da vida pacata de cidade pequena, e começou a experimentar com drogas pesadas, especialmente heroína.
Ela ainda tentou voltar para casa, e talvez seguir aquele caminho "normal" de casar-se e ter filhos, mas a coisa não funcionou. Nesse meio tempo apareceu uma oportunidade de fazer um teste em San Francisco, para uma banda local. A menina doce e sensível foi logo cair no meio da confusão e agito dos anos 60: lutas pelos direitos dos negros, Vietnan, guerra fria, os beatniks, hippies, tudo somado a muito LSD e Heroína. Ela foi por ali trilhando o caminho dela, até ao dia em que conseguiu uma chance de cantar no Monterrey Pop Festival de 1967...De repente o mundo acordou e viu uma menina de cabelos longos, que nem era tão feia assim, abrir as portas de céu e inferno com uma voz que chocou a todos! Daquele verão de 1967 até o dia 4 de Outubro de 1970, foram três anos fulminantes, onde ela alcançou o estrelato, foi aclamada pelo mundo, e morreu num quarto de hotel, aos 27 anos, numa overdose de heroína.
Eu nem queria escrever essas notas biográficas, que eu não começei com essa intenção. Mas tenho andado com a idéia de inserir algo tipo "momento cultural" no meio dos textos, caso encontre um leitor desavisado, ou leigo no assunto. O motivo de começar a escrever hoje era o de encontrar uma resposta. Na verdade, nunca acredito que vou achar resposta alguma, apenas por escrever, mas acabo escrevendo, naquela de "crer contra a esperança". A idéia era responder à minha mãe, uns bons vinte anos depois, algo que nem tentei na época: "o que é que aquela louca tinha, que parecia estar morrendo".
Já se foram muitas audições, leituras, e bebedeiras, tentando encontrar nas entrelinhas daquela nota biográfica acima, onde é que aquela menina doce do Texas foi buscar aquela dor. Eu sei que ela teve umas experiências ruins na escola, onde ela chegou a ser chamada "o MENINO mais feio do colégio", mas será que isso foi um estopim tão grande assim? Alguém poderia citar as drogas, mas quem a viu tocando nos botecos antes do estrelato, e das drogas, diz que ela nunca mais cantou tão bem...Também não acredito que drogas "criem" algo novo que não está dentro de você. Elas podem até maximizar, ou destruir de vez, o talento, mas não tiram de dentro o que você não tem.
Espera aí que tá chegando uma idéia! Será que ela não era algum tipo de receptor ultra-sensível da época dela? Além dos problemas da guerra, havia aquela questão que tava "pegando", que era a luta dos negros, que ainda eram segregados. Não teria a menina branca do Texas tomado as dores, ao ponto de se tornar um deles? Ela não só cantava música negra, mas sempre foi envolvida na luta pelo fim do racismo, e o negócio na época era sério e violento, Martin Luther King que o diga. Se ela queria ser sincera ao cantar Blues, ela talvez achasse que tinha que ser um deles, o máximo que ela pudesse, ao menos no sentimento. Nunca uma branca conseguiu cantar Blues do jeito que ela cantou, com tanta dor e força. Já é um chavão dizer mas ela foi a cantora branca mais negra de todos os tempos. Às vêzes foi até mais negra do que as negras, quando gravou "Summertime", um clássico da música americana que, embora tivesse sido composta por um branco, contava a estória de uma ama negra que ninava um bebê branco. Muitas já tinham gravado mas, depois de Janis, poucas têm se aventurado a tentar de novo.
Janis também incorporou os sofrimentos de ser mulher, tudo com um conhecimento de causa absurdo para alguém tão jovem. Ela parecia uma anciã quando chegava perto de um microfone. Ela também tinha seus momentos alegres, e sabia passar isso ao público. A risadinha marota que ela dá no fim da faixa "Mercedes Benz", uma das últimas da vida dela, ainda é uma das coisas mais gostosas já gravadas.
Eu confesso que, hoje em dia, tenho ouvido pouco Janis, porque ela toda vez me acerta uma veia lá dentro que acaba me levando a beber mais do que eu devo. Eu lembro um dia em que liquidei umas dez cervejas grandes, que não eram brincadeira, tipo "bock", enquanto assistia a um vídeo dela, e no fim fiquei ali numa cadeira de balanço, chorando feito menino...
Resisti à tentação de mostrá-la hoje cantando "Summertime", ou "Ball and Chain", que estarreceu o mundo em Monterrey. Você podem ir no youtube.com e assistir lá. Queria deixá-la no auge, cantando "Maybe", uma das minhas favoritas. Também no vídeo, um baixista que gosto muito, Brad Campbell, que tomou um "chá de sumiço" após a morte dela, mas que sempre tenho como referencial ao tocar Blues ou Rock. Sing the Blues sweet girl!
Um dia minha mãe leu um artigo sobre Janis numa revista. Ela lembrou que eu tinha uns discos dela na estante...Só por curiosidade, ela foi até lá dar uma olhada...Nesse momento eu estava descendo de um ônibus lá perto. Quando eu vinha me aproximando de casa, ouvi uma voz familiar cantando nas alturas de meu toca-discos...Ao entrar em casa me deparo com minha mãe, deitada no mesmo sofá que eu gostava de ouvir música...Ela me olhou ainda com algumas lágrimas nos olhos, e... me pediu perdão...

sábado, julho 15, 2006

"The Bass Champion"

Num blog de baixista é necessário eu começar a fazer meus tributos. Eu sempre falo que tocar contrabaixo é coisa pra macho, e meu amigos riem. E se o baixista for um boxeador, ex-campeão de pesos pesados do estado de Ilinois, no norte dos EUA? Aí é que a minha teoria é reforçada! O contrabaixo é um instrumento de poucos amigos, e os poucos que conseguem manter uma amizade com ele, geralmente começam na adolescência. Ninguém pode dizer que toca contrabaixo desde criancinha, porque é simplesmente impossivel uma criança ter mãos, e altura, para envergar aquele gigante, carinhosamente chamado de "dog house", pra mim, a casinha do cachorro.

Mas em Willie Dixon, um dos meus ídolos e referência, o contrabaixo encontrou um "parceiro de peso". Nas mãos daquele gigante vindo do Mississipi, o contrabaixo até parecia um violoncelo! Dixon achou na música uma maneira de sair das ruas, e do encalço da polícia, com quem sempre teve problemas. Durante a segunda guerra também fugiu do alistamento, e acabou ganhando um "tempo de reflexão" de dez mêses na cadeia.

Ainda quando adolescente, decidiu fazer o que muitos sulistas negros faziam na época: imigrar para Chicago, em busca de uma nova vida. O estado tinha uma industria fortíssima, especialmete automotiva, e era o destino de muitos que viriam a re-escrever a história do Blues moderno, como o próprio Dixon e Muddy Waters, o rei de Chicago. Mas ao chegar lá, resolveu usar seu tamanho, e vivência das ruas, para se tornar boxeador. Chegou a ser o campeão estadual profissional, e aí dá para entender algumas de suas letras de música, como em "I'm Ready", em que ele descreve o cara que está no bar, doido pra que alguém começe alguma confusão, e ele possa entrar "rachando"! O cara era para ser levado a sério quando cantava algum verso do tipo "don't mess with me", talvez livremente traduzido para "não mexa comigo que você apanha"!

Mas para infelicidade dos ringues, e alegria da música, o campeão aposentou-se cedo, e começou uma das carreiras mais fulgurantes da história do Blues, lançando as bases, ou melhor, gestando o filho do Blues, o Rock'n Roll. O elo de transição do Blues com o Rock pode ser percebido nas participações dele nos discos de Chuck Berry, nada mais nada menos do que o pai do Rock. Ele foi talvez o compositor de Blues mais gravado pelas bandas emergentes de Rock da época, especialmente as inglêsas, como Roling Stones ("I Just Want To Make Love To You"), Cream("Spoonful") e Zeppelin ("I Can't Quit You Baby", "Bring it on home"). Ele nunca contentou-se em apenas tocar, mas foi também cantor dos bons, compositor prolífico, e manda-chuva da Chess Records, o celeiro do blues em Chicago. E o cara escreveu com Muddy Waters "Hoochie Coochie Man", que é o "cavalo de batalha" de qualquer Blues jam no mundo!
Infelizmente, os vídeos de Willie Dixon foram retirados do youtube! Quem viu terá que contar para os netos o dia em que eles "toparam" com o negão tocando por aqui. Se o "homem" reaparecer por lá, colocarei de novo no blog! Mas, para não dar o braço a torcer a essas vicitudes da internet, fica aqui um clip com Muddy Waters, o verdadeiro Rei do Blues, junto com Sonny Boy Williamnson na gaita, e o boxeador-baixista Dixon ao fundo! Destaque para a "moral" dos caras, especialmente o penteado de Muddy, tocando aquilo que eles tinham domínio absoluto!

sexta-feira, julho 14, 2006

O Blues Brother Original


Venham por aqui, disse o trombonista, e os dois brazucas bêbados o seguiram. Ao passarem pelos seguranças indigestos, os dois ainda deram tchau pra os caras. Eles subiram a passos trôpegos a escadaria que dava para os camarins e, lá no topo, encontraram um corredor que passava por trás de toda a extensão do palco lá em baixo. No fim do corredor havia uma porta aberta, de onde dava para ver um pequeno sofá. Naquele sofá, conversando animadamente, estava um senhor negro, baixinho, com um chapéu branco, camisa xadrez e calças vermelhas. De repente ele pára a conversa e olha para o lado, em direção ao corredor. Ele abre um sorriso enorme e, acenando, grita "Venham cá meus filhos!"...

New Orleans, Junho de 1996. Passamos o dia batendo pernas e "inspecionando" os bares da cidade. Estávamos particularmente ansiosos naquele dia. Era um dia cheio de eventos para quem gostava de Blues. Iríamos à tarde passear de barco no Mississipi, e teríamos que descer correndo do barco a vapor "Natchez", e ir ao "House of The Blues", ver uma lenda tocar, Junior Wells, o gaitista e eterno companheiro de Buddy Guy. Juntos eles tinham gravado dezenas de discos, dos quais eu tinha uns 5. Confesso que estava um pouco nervoso naquele dia.

Conseguimos chegar em boa hora, e nos instalamos em pé, com os cotovelos no palco. Combinamos a estratégia de só sair um de cada vez pra comprar cerveja, para não perder o lugar. O astral do bar estava ótimo, casa cheia, gente bonita, e nós ali na expectativa. Finalmente o baixinho Wells entrou em cena e a casa tremeu! Pra quem esperava um show com muito "slow blues" ou "shuffles" se enganou. O cara baixou um espírito de James Brown e disparou uma saraivada de funks irresistíveis. A banda era super competente, com destaque para o naipe de metais. Ficamos ali em transe, sem saber se chorávamos ou ríamos. Provavelmente fizemos uma combinação dos dois. Eu estava tão louco que queria alguma recordação daquele show, nem que fosse ao menos tocar no pé dele! Eu até que tentei mas, pra minha vergonha, o baixinho tomou um susto e pulou pra trás com medo! Eu não tinha onde enterrar a cabeça! No fim ele saiu com um microfone sem fio pelo meio da multidão, e eu consegui tocar no ombro dele, apesar dos empurrões dos guarda-costas... Eu mal sabia o que estava pra acontecer...

Após o show ficamos por ali bebendo, tentando digerir os eventos, quando avistamos o pessoal da banda tomando umas também. O doido do meu amigo inventou de ir lá, pra tentar uns autógrafos. Saí arrastado por ele, e nos aproximamos dos caras. Em pouco tempo estávamos numa conversa animada, e de repente um dos caras disse "espera aí, vocês são do Brasil?" "yes, man" respondemos com nosso inglês cambaleante. "Mas vamos tocar no Brasil no mês que vem!", disse ele, e nos pegou pelos braços e saiu nos arrastando em direção aos camarins!

De repente estávamos ali, cara a cara com o Homem. Eu sentado no sofá ao lado dele, e meu amigo de cócoras, praticamente ajoelhado, tentando juntar os pedaços do nosso inglês e manter uma conversação. Ficamos até um pouco surprêsos, mas não muito, ao ver o quanto ele entendia de música brasileira. Falou de Jobim a Milton Nascimento com um conhecimento de causa incrível. Também falou da amizade com Buddy Guy, e até citou alguns shows feitos no Brasil, que inclusive eu tinha um disco desses shows. Ele ficou um pouco impressionado, e feliz, de ter gente da idade da gente, de outro país, ouvindo a música dele. Sabemos que lá na América a juventude negra já não dá importância ao Blues. A maioria parece ser de brancos agora, dos que estão carregando a tocha desse ritmo originariamente negro.No fim, já pra não encher o saco dele, nos despedimos, com direito a fotos, que graças a Deus eu carreguei a máquina escondida para o show.

Partimos pelas ruas escuras e desertas de New Orleans, com medo de um assalto, com um rolo de filme escondido nas cuecas, e muita estória pra contar pros netos!
A seguir, uma novidade no bloguinho que me deixou muito feliz! Seguindo a tradição de "matar o pau e mostrar a cobra", temos agora vídeos! Espero que funcione com conexões lentas. Provavelmente é preciso ter certos "plug-ins" como Flash e Shockwave, mas não tenho certeza. Se não funcionar me deixem uma mensagem! Nos testes aqui o negócio funcionou uma maravilha. No vídeo, Junior Wells, cantando seu clássico "messin' with the kids", com Mike Bloomfield na guitarra! Se não me engano, o outro cara que canta, por sinal muito bem, o gordinho branquelo, é Nick Gravenites, que escrevia músicas com Janis Joplin! Enjoy!

sábado, julho 08, 2006

Os Dez Mandamentos Segundo B.B King

Eu vi, meus irmãos, a face de Deus, e ele era negro, sentado no seu trono, cercado de anjos e arcanjos, todos a tocar instrumentos musicais, numa tarde quente e úmida de Atlanta.



Era um sábado de agosto, no verão de 2002. Eu estava com o irmão baixista, Marcílio, que estava passando uns dias conosco, recém-convertido ao Blues, através dos cultos realizados no finado La Prensa, que ele provavelmente um dia relatará a mesma visão, mas talvez com palavras diferentes. Para mim, como aconteceu foi assim:
Recebi o chamado do Senhor pela manhã, através de uma voz interior, com ordens de ir ao Chastain Park, no norte da cidade, tentar comprar ingressos para um show de Blues que iria acontecer à noite, ao ar livre, e em noite de lua. Chegamos lá e a bilheteria estava fechada. Encontramos um peregrino da Inglaterra, que tinha acabado de chegar na cidade, e tinha recebido o mesmo chamado, através de um jornal. Tentamos de todas as formas contactar telefones pra comprar os ingressos, sem sucesso. Fomos para casa cansados e confusos. Como conseguiríamos ver o show sem os ingressos? A mesma voz me falou novamente, e disse que eu confiasse, e que voltasse às 5 da tarde, quando as portas se abririam.
À tarde retornamos, eu e o irmão Marcílio, e descobrimos que os ingressos mais baratos que, por "coincidência", eram os que podíamos pagar, estavam esgotados. Ficamos abatidos, mas desta vez não desanimamos. Começamos a andar pelas ruas vizinhas e, orando, pedimos orientação, ou que um anjo nos fosse enviado, para nos dar suporte. Talvez ele pudesse nos materializar, discretamente, num cantinho lá dentro, quem sabe! Após alguns minutos, avistamos um negro alto, que caminhava falando no celular, e ele tinha um pequeno cartaz na mão, que parecia dizer "I Need Tickets". Começamos a segui-lo com esperanças renovadas. Depois de algum tempo conseguimos alcançá-lo e, um pouco nervosos, perguntamos se ele tinha entradas. Ele primeiro olhou para os lados, nos estudou dos pés à cabeça e só depois é que disse que, até então, nada...
Continuamos com fé pela rua deserta, e começamos a ter a certeza firme de que assistiríamos ao show. Se conseguimos encontrar um cambista de bobeira assim, pensamos, numa rua deserta nos Estados Unidos, era porque alguma coisa estava mesmo para acontecer. Avistamos um outro homem a uns cem metros, parado na beira da estrada, e corremos para ele . Chegamos lá e ele disse que só tinha um, e de $60, que era o mais caro. Neste momento o outro homem veio correndo para nos dizer que tinha acabado de conseguir dois, e dos mais baratos, e que nos venderia pelo mesmo preço da bilheteria! O milagre que tanto esperávamos! Mas irmãos, eu faltei com a fé, e dando uma de Tomé, que pediu a Cristo para mostrar a chagas, demonstrei desconfiança, achando que iríamos ser roubados, e perguntei se o ingresso era "quente" mesmo, ao que ele deu uma gargalhada enorme, onde mostrava as iniciais dele, acho, encrustadas em ouro nos dentes frontais! Disse que só comprava mais barato, e assim vendia pelo preço normal, satisfazendo assim aos clientes! Que sonho de cambista! Não tivemos dúvidas de que ele era o anjo que tínhamos pedido.
Finalmente entramos na área do show e encontramos lá o peregrino inglês, que tinha conseguido ingressos de outra forma, talvez com outro cambista, quer dizer, anjo. Nos congratulamos, e começamos a nos preparar espiritualmente, bebendo um suposto néctar sagrado australiano, de nome Foster, em latas de 600ml, e que Deus mantenha ardendo no fogo do hades quem inventou coisa tão ruim, mas afinal nos instalamos. Percebemos, como marinheiros de primeira viagem, que os outros fiéis vieram muito mais preparados: o parque permitia que comes e bebes fossem trazidos, e todos carregavam verdadeiros toneis de cerveja e lanches. Nessa área mais barata, sentávamos na grama, enquanto na outra parte havia cadeiras e mesas, onde todos trouxeram não só champanhe e vinho, mas também velas, para quando a noite chegasse.
Tivemos ainda que aguentar dois shows de abertura, de uns caras que de vez em quanto tentavam tocar blues. Foi quando começei a doutrinar o recém convertido irmão Marcílio, a respeito das sacanagens do Blues, e como o problema em si, tecnicamente falando, não era executar a música, mas como criar uma atmosfera propícia, baseado naquilo que você é, e sente, e como trazer a platéia pra participar também, seja para rir ou chorar.
Após umas duas horas, finalmente, A Banda entrou no palco, ainda sem o Homem, mas mostrando para que veio. Já estava começando a anoitecer, e a lua, enorme, começava a ensaiar a entrada também. O séquito sagrado e real era composto de 4 metais, que eram sax, tenor e alto, mais trumpete e trombone, como também um contrabaixo elétrico, bateria, piano e órgão hammond, e guitarra base. O grupo começou a noite apenas com músicas instrumentais e, talvez não por acaso, devido a todas aquelas questões de linhagem real etc, todos eram negros. O irmão Marcílio imediatamente entendeu do quê eu estava falando, quando eu tinha falado sobre criar atmosferas, nuances, impressões e sensações: os caras foram no céu e no inferno, e toda a audiência foi junto, e gostando. Solos de Trumpete com surdina, órgão e sax, às vezes tocando forte, às vezes quase inaudível, mas nunca ao ponto de tirar o interresse da música....
Enfim, na terçeira música, Ele apareceu, velhinho, cansado e diabético, mas empunhando seu cetro e deusa negra, Lucille. Ele sentou-se e fez tudo além do que se esperava de um homem-deus de 76 anos de idade: cantou muito, solou soberbamente, e ainda contou histórias e "causos", tudo na boa tradição do bom São Louis Armstrong, de ser o entretenedor perfeito, seja tocando, cantando, e principalmente criando empatia com o público. Era admirável o controle que aquele ex-catador de algodão e motorista de trator tinha sobre as massas! Aquele garoto que andava 20 Km por estradas de terra escuras, da fazenda à cidade, empunhando um violão barato, para ganhar uns trocados na esquina, ou brechar shows pelos buracos das paredes, estava ali em cima do palco, com domínio absoluto sobre uma multidão de gente "esclarecida" e com Phd's. Ele não tinha só o controle do público, mas como também da música e, não por último, do grupo de cobras criadas que lhe dava suporte, tudo isso sem perder um cabelo de simplicidade como pessoa, e como músico. Uma curiosidade foi ver em cima do palco, que era enorme, num cantinho à esquerda, umas 50 pessoas que estavam sentadas numas cadeiras postas lá: a "pequena" família do Homem, com sua dezena de filhos, netos e bisnetos!
A seguir, escrevo o que eu consegui ouvir e aprender do mestre, que sempre praticou o que pregou, e que tocava lá do vale, e eu tão longe, num alto de um morro, quase trepado numa árvore. Eu estava, obviamente, ligeiramente bêbado, e emocionado, e a lua vinha surgindo exatamente por trás do palco-altar. Mas é assim minha versão, meus irmãos:
  1. Amarás a Música acima de todas as coisas.
  2. Darás de ti sempre o melhor.
  3. Nunca desistirás.
  4. Serás verdadeiro contigo mesmo.
  5. Buscarás sempre a simplicidade na Música.
  6. Trabalharás incansavelmente.
  7. Tocarás de todo o teu coração, de toda tua alma.
  8. Não cobiçarás o sucesso dos outros.
  9. Alegrarás sempre a platéia.
  10. Terás sempre um coração grato.
Bem, irmãos, foi assim que tudo aconteceu, ou acho que sim pois, olhando daqui agora, desse suposto futuro daquele dia, tudo parece muito irreal, ou muito envolvido numa áurea de sonho, principalmente por causa daquela lua enorme sobre nós, e das velas nas mesas.
No fim do culto-show, conseguimos nos aproximar dele, e assistimos às últimas músicas bem de perto, e ficamos muito emocionados. Infelizmente não tinhamos mais filme na máquina, ou pergaminho, e temos agora que nos contentar em guardar na memória. Guardar aquela noite incrível de um verão em Atlanta, onde vimos a face de Deus, e ele era negro, que nos dizia-cantava constantemente: how blue can you get?
Saímos direto para o primeiro bar que encontramos, e ficamos ali mudos, sorvendo lentamente a cerveja. Na cabeça, apenas um pensamento: how much blues you can get...
No vídeo, toda a realeza do Blues e Jazz, que eu até me recuso a nomear! Tá bem, só alguns nomes, alguns já até partiram dessa pra outra. Eric Clapton, Koko Taylor (já se foi) que canta uma das partes, Charles Musselwhite na gaita, Bo Didley(um dos pais do Rock) com sua guitarra quadrada, Jack Dejohnete na bateria, Dr John no piano , Billy Preston, que nos deixou dia desses, no teclado, Nathan East no baixo, Groover Washingon Jr (também tocando no céu), no sax, e por aí vai! O Clip foi tirado da final da batalha das bandas do filme "Blues Brothers 2000" . Um espetáculo! O local é provavelmente o "The house of the blues" de Nova Orleans, mas não tenho certeza. Parece muito com o lugar onde vi Junior Wells, no texto "O Blues Brother Original"...