quarta-feira, novembro 12, 2008

A ONDA GIGANTE


Meu velho amigo, bom dia. São 10 horas da manhã aqui em Recife. Faltam poucos minutos para a chegada da onda gigante mandada pelo Atlântico. Diferentemente do dissimulado Tsunami, essa vem cheia de pompa e espuma! Ela não vem de surpresa, como no começo do século, afogando turistas incautos. Essa, você sabe, já vem sendo anunciada há dias pelos jornais. Mas o que ninguém sabe é que, um pouco antes dos sismólogos preverem esse monstro, eu já havia sido avisado...eu não queria partir sem lhe contar esta história incrível.

Fico um pouco temeroso de que você me tenha por louco ou senil, afinal você bem sabe o quanto estes 80 anos de idade pesam em mim. Mas, por favor, não pense que eu endoidei de vez, eu lhe peço. Eu preciso que você acredite em mim, pois ainda necessito que você me faça um último favor, coisa muito simples. Amanhã você receberá em sua casa um grande pacote. Seguem agora as instruções sobre o que você tem de fazer, como também mais alguns detalhes de como tudo aconteceu.

Antes disso, saiba que a cidade do Recife foi evacuada. Todos fugiram como loucos. Quer dizer, quase todos...neste momento, estou escrevendo de um cortiço aqui na praia do Pina. Você ainda deve se lembrar dele, não, aquele em cima da antiga Soparia, em frente ao centenário bar "Pra Vocês"? Incrível como eles resistiram a todos esses anos! Se eles tiverem que cair hoje, isso não se dará por mãos humanas, eu lhe garanto. Eu sempre disse que voltaria a essa praia , mas não sabia que seria nessas circustâncias. Mas que diferença faz a essa altura? Não, não fique triste. Afinal, como é que dizia aquele velho ditado? Que já estamos “fazendo hora extra" na terra há um bom tempo? O que eu preciso, mesmo, é que você leia este e-mail e depois faça como eu lhe recomendei.

Eu necessito que você distribua umas centenas de livros que vão chegar a sua casa: é um livro que eu editei e mandei imprimir. São histórias de fantasmas! Eu sei que você pensará: “do que diabos esse velho louco está falando”, mas tenha um pouco de paciência comigo. O caso é que fui intimado por um fantasma a cumprir uma antiga promessa! Sim, um fantasma andou me aterrorizando desde que cheguei aqui há duas semanas! Logo eu, esse velho cético, tendo visões, ouvindo coisas, acordando no meio da noite assustado. Eu tinha que cumprir essa promessa nem que fosse - e de certa forma será - a última coisa que eu fizesse na vida. Tudo se passou mais ou menos assim:

“Tudo começa quando me mudo para cá. Na primeira noite, Às quatro da madrugada, acordo sobressaltado com um ruído de água fervendo. Não, meu amigo, você não pode imaginar o meu terror. O cheiro de café é intenso e incensa todo o apartamento. Com toda a dificuldade dos meus 150 kilos, consigo me levantar e me arrastar até a cozinha. Para minha surpresa, a luz está acesa... ao chegar na moldura da porta, meu coração pára. Todos os cabelos do meu pescoço se eriçam ao me deparar com um homem de idade, gordo, uma aparência cansada, cabelos bem brancos e desgrenhados... na frente do fogão está nada menos do que meu finado pai, tranquilamente coando café! O fogão tem duas bocas acesas, e o velho esquenta a água numa panela enquanto mantém o café fervendo na outra. Ao terminar de coar, ele despeja na garrafa térmica e desaparece! Fico alguns minutos congelado de terror. Meu corpo simplesmente trava. Fico com medo de me mexer e ver mais alguma coisa.

Após algum tempo, finalmente consigo me mover e voltar para meu quarto. Acendo a luz e escancaro a janela. Fico implorando pela chegada da manhã. “Mas não é possível” - penso - “depois de velho, começar a ter alucinações”! Nem nos meus piores porres, acredite, eu vi algo tão real, assustador.

Enfim, a manhã chega e eu começo a achar que foi apenas um pesadelo acordado. “No mínimo” - falo comigo mesmo - “é aquele uísque barato que ando tomando em casa sozinho”. Volto para a cama e durmo mais um pouco. Ao acordar, a primeira coisa que faço é ir a cozinha e, para meu desespero, a garrafa e as panelas continuam lá na mesma posição que meu "pai" as deixou.

No dia seguinte, saí para minha maratona de médicos e exames. Eu sabia que um dia todos aqueles anos de mãos-de-vaca, chambaril e bebedeiras teriam que cobrar seu preço. Tudo bem. É justo. Quando retorno, o táxi me deixa na porta do prédio. Respiro com dificuldade ao ver que a janela que eu fechei ao sair está agora aberta. Ao entrar em casa, olho para a janela. Ao lado dela, sentado na minha cadeira de balanço, lá está ele de novo, o velho, bebericando algo, sem dúvida alguma uma vodca com suco de laranja! Engraçado que desta vez não tenho tanto medo. Não, meu amigo, não tenho medo...tenho saudade... percebo que ele não me encara, não sei por quê. Parece chateado comigo por alguma coisa que eu fiz. Eu tenho vontade de falar, mas ele se levanta e se dirige ao segundo quarto, um que eu uso como depósito. Lá guardo pilhas e pilhas de bugingangas, livros, discos de vinil pré-históricos, um velho rádio...espero por alguns segundos e o sigo. Quando entro no quarto ele não está mais lá...

Mais um dia e, logo pela manhã, vou ao bar em frente, o "Pra Vocês" e bebo um pouco pesado para um velhinho do meu estado. É dia de reunião do clube dos "Daqui Ninguém Me Tira". É aquela associação, por assim dizer, de moradores e de descendentes de antigos residentes do bairro do Pina. Alguns têm conseguido ficar no bairro, não sei como, apesar de todas as tentativas de super empreiteiros, espigões de luxo, corretores de imóveis, donos de restaurantes chiques, artistas plásticos, consultórios médicos, enfim, qualquer coisa que os afaste da praia ou do boteco deles. Você deve se lembrar de quando eles ficaram famosos se acorrentando às portas do bar, no dia em que os oficiais de justiça e a polícia vieram numa ação de desapropiação, o que causou uma certa comoção nacional vê-los dispostos a apanhar, assim, pelo cantinho deles! No final, conseguiram ganhar a causa, talvez a única nas vidas deles. Ao longo dos anos, nós boêmios temos sofrido todo tipo de retaliação por parte da sociedade: leis anti-fumo, anti-álcool, anti-sexo, anti-música, anti-arte, divórcios com pensões abusivas, toque de recolher, impostos abusivos em tudo que de longe sequer lembre a palavra Prazer ou a liberdade das noites, a irmandade dos bares. "Aquele bando de imprestáveis ociosos" , dizem por aí. "Querem ter vícios? que paguem caro por eles!!!” Até parece que nossos inimigos sabem que o mote do clube é justamente esse, de que “uma vida sem vícios não vale a pena ser vivida”! No fim da tarde, depois de ser carregado por dois garçons e um amigo, vou para a cama.

Ás 3 da manhã, acordo dos meus sonhos de bêbado. Da sala vem uma música alta: o bom e velho Ray Charles cantando algum Blues. Quando chego lá , encontro meu velho toca-discos rodando um bolachão de vinil! Começo a suar frio de novo ao ver que ele nem sequer está ligado na tomada! O disco roda como novo, sem estalos. A música é linda, mas fico muito nervoso. Com as mãos trêmulas, retiro a agulha do disco. Ao lado do toca-discos está uma pasta preta, do tipo 007. Essa valise, que eu mantinha no depósito, guardou, por décadas, os documentos mais preciosos de meu pai. Agora ela aparece na sala...Coloco a pasta em cima da mesa. Ao abri-la, encontro umas folhas desbotadas, escritas com a caligrafia de meu pai, umas letras bem inclinadas e longas. Outras têm uma escrita diferente, mais delicada, talvez a letra de minha mãe. Parecem ser os velhos contos que ele gostava de escrever. Sento-me com dificuldade e mergulho no passado.

Fico emocionado ao reler aquelas histórias. Lembro-me que muitas delas passaram anos na cabeça de seu Riba, sem ele nunca passar para o papel. Era impressionante como ele contava e recontava aquelas histórias ao longo dos anos, sem nunca aumentar ou tirar um ponto. Era como se elas fossem realmente "escritas" na mente dele. Lembro-me que, depois de muito pedirmos, ele começou a , de fato, escrevê-las. Depois que a vista ficou cansada, minha mãe, dando uma de escriba, começou a tomar ditados, para depois digitá-los num blog. Na maioria deles o que se salientava era o senso de humor, negro é verdade, mas eram espirituosos de qualquer forma. Ainda me lembro de estarmos num bar qualquer e ele a contar as “histórias asssombradas” e nós morrendo na gargalhada! Porém, um deles não era nada engraçado... era um conto curto e sombrio sobre uma grande onda que destruía o bairro ou a cidade, não lembro...era uma espécie de vingança, uma maldição, pela expulsão deles do bairro do Pina, que eles tanto amavam. É justamente esse conto que procuro, quando ouço aquela voz inconfundível vindo de traz de mim! Minhas mãos se contorcem no papel que seguro, amarrotando-o...

"Você nunca cumpriu sua promessa!" Essa é a sentença que ouço naquele som anasalado e agudo da voz de meu pai. Viro-me com dificuldade. Na penumbra do corredor, ali está ele de bermudas e sandálias, mas sem camisa, roçando as costas na moldura da porta do banheiro, da mesma maneira que ele sempre se coçou. Nas mãos ele tem um longo calçador de sapatos, feito de chifre, que também sempre o ajudou na arte de coçar-se. Eu não consigo distinguir olhos ou boca naquela escuridão, mas nem precisa, de tão assustado que eu estou. "Já se vão mais de quarenta anos e você ainda não cumpriu sua promessa, aliás, você nunca nem sequer lembrava do meu aniversário, quanto mais de cumprir promessas!”, ele me repreende. Fico ali sem saber o que dizer, quando ele começa a me contar uma história. Ele fala num tom solene e cansado. Tudo é muito rápido, algo sobre a vida no além, mas não só isso. É algo que me diz respeito, também.

"Desde que morri tenho estado preso a ciclos de penitência. Ciclos viciosos, sem fim. O primeiro foi uma jornada para minha Belém do Pará. Todos os dias eu andava quilômetros e mais quilômetros, só para acordar todos os dias no mesmo ponto em Recife. Passei anos- como se houvesse tempo onde estou - tendo aulas de piano com uma professora invisível. Eu nunca conseguia sair da primeira lição. Todos os dias tinha que aprender as mesmas notas. Quando consequi sair desse, entrei num dos piores, que foi tentar encontrar a lógica do jogo do bicho. Ficava metido numa sala sem janelas, em meio a centenas de livros e anotações, tudo na tentativa vã de encontrar o algoritmo das bolas do sorteio. Nunca encontrei. Depois de todos esses sofrimentos, parece que aprendi como evitá-los, o que pode me proporcionar encontrar o caminho para fora desse purgatório: Desde que você se mudou para cá eu venho escrevendo e reescrevendo estes velhos contos. Percebi que comecei uma nova odisséia: passo horas escrevendo uma página, mas, quando vou para outra, aquela simplesmente se apaga! Eu nunca consigo terminá-los...foi quando lembrei-me da sua promessa de publicá-los, coisa não cumprida por você e que, de certa forma, isenta-me de algum pecado, pelo menos desse. Você pode me ajudar trazendo-os à luz e tornando-os conhecidos às pessoas, como eu sempre planejei. Talvez assim eu possa quebrar essa corrente mental e espiritual. Pense nisso. Agora eu precido ir...escrever e escrever...ah, antes que eu me esqueça: num dos contos eu consegui predizer o futuro. Se você ainda prentende viver mais, o que é um exagero nesta condição decrépita em que você está, você deve abandonar esse lugar nos próximos dias. Adeus!”

Meu dileto parceiro de tantos anos, meu tempo está acabando! (a “grandota” está vindo por aí, surfando alegre e salgada, a malvada!). Essas foram, mais ou menos, as circurstâncias que me fizeram editar e mandar imprimir os livrinhos de contos de meu pai. Quando você os receber amanhã aí na sua Caruaru, por favor, mande alguém ir à feira, às praças, aonde você quiser, e distribua-os! Não precisa vendê-los, apenas faça-os conhecidos. Deixe que eles falem um pouco dessas pequenas diabruras de meu pai, que são também um pouco as nossas, desse amor pelas histórias, pelos casos, pelos livros, dessa luta contra nossos fantasmas e, às vezes, a favor deles! Por via das dúvidas, publique, também, os MEUS, para que você não tenha, como eu tive, sustos no tempo que lhe resta!!!

Agora eu preciso ir. A balbúrdia lá embaixo está infernal! Alguns dias antes dos cientistas divulgarem nos noticiários, tentei avisar a meus amigos do clubinho sobre a catástrofe que estava para nos acontecer, da aparição do meu pai, das profecias de inundação, da destruição, do Fim, de que precisávamos partir...meu amigo, a reação deles foi totalmente inusitada e ao contrário de tudo que eu esperava! Queria tanto ter tempo para contar mais sobre isso!

Acabei de dar uma olhada pela janela...lá no bar as mesas estão lotadas! Acho que estão cantando animadamente “Teresa da Praia não pode ser minha, nem tua também”! Velhos loucos! Na primeira mesa do canto, de frente para a entrada, onde ele sempre sentou, há um trintão bonitão, de óculos bem escuros , meu pai. Enquanto ele preside uma mesa de vivos e mortos, ele vai ditando o jogo do bicho a um cambista que já deve ter morrido há uns bons 40 anos, o “mão branca”. Papa está magrinho como eu nunca vi, embora os cabelos já começem a ficar grisalhos... ele esbanja um sorriso bonito e confiante, feliz. Incrível que eu nunca tinha ouvido ele cantar, mas até fazer coro ele está fazendo! Rapaz, eu preciso descer e ver isso de perto! Meus amigos já estão batendo na porta para me ajudar a descer as escadas. Adieu, mom ami! Nos vemos em outras farras!