quarta-feira, março 16, 2011

Uma Lágrima (a um amigo)

Hoje é um daqueles dias de lembranças e reflexões: oito de março, data de aniversário de um velho amigo que partiu. Como ele gostava de dizer: dia internacional da Mulher: "sou o presente de Deus a todas elas!"  Assim como gostava o poeta Vinicius, nossa amizade foi totalmente realizada em torno de mesas de bar. Éramos diferentes em muitos aspectos, mas sempre achávamos pontos de contato para conversar e viver a vida. Por alguns anos fomos inseparáveis. Tínhamos dois apelidos para a dupla. Na fartura, “Johnnie e Walker”. Na pobreza, “Pi e Tu”, uma aguardente pernambucana...

Ah agora até lembrei-me de uma vez que nos encontramos e não bebemos: meu casamento. E ele era o padrinho! Meu casamento foi relâmpago: cinco meses de namoro. Amigos inconformados, “cê tá louco?” diziam uns, outros disseram que não iriam testemunhar aquele suicídio. Fiquei espantado com a reação. Numa noite, cheguei pra ele e contei do escândalo que estavam fazendo. Ele tranquilamente falou: “eles não sabem de nada, siga seu coração”. E ali mesmo achei meu padrinho. 

Para a cerimônia na igreja, os velhos amigos ainda ficaram surpresos com a ausência da birita. Pediram intervenção do super padrinho, das autoridades eclesiásticas, da noiva, sem sucesso: normas da igreja, ponto final. Um outro colega, astutamente, chegou bêbado – o casamento era às nove da matina! - mas com uma justificativa convincente: “já que não permitem que bebamos aqui, eu trouxe a cachaça 'nim mim' ”! Menino inteligente aquele! Mas no grande dia, apesar da lei seca, o padrinho só fazia rir orgulhoso do “cargo”. Ele levou tão a sério a “nomeação” que até fez uma vaquinha – uma extorsão, reclamaram! – com os colegas do trabalho e me conseguiu dez dias numa pousada em Porto de Galinhas! Lua-de- mel de luxo!

Flashbacks e Tiradas: dirigindo no caminho para a praia de Tamandaré. No banco traseiro, uma caixa cheia de cervejas geladas. No rádio, alguma música boa, bate-papo bom. Eu dirigia a sessenta por hora, no máximo. Comento: “parece que o mundo todo está nos ultrapassando”. “E daí?” , ele responde, “ pra que pressa, se o que vamos fazer lá já estamos fazendo aqui mesmo?”. Corretíssimo em tese, noves fora beber dirigindo! 

Hinos para todas as ocasiões: “Sentimental eu Fico” de Renato Teixeira: “sentimental eu fico quando pouso na mesa de um bar eu sou...um lobo cansado, carente de cerveja...e de velhos amigos...”. “O Negócio é Amar” de Dolores: “tem gente que jura que não volta mais, mas jura sabendo que não é capaz...”. E a preferida, de Toquinho, “Aquarela”: “numa folha qualquer eu desenho um navio de partida/com alguns bons amigos bebendo de bem com vida...”.

Paixão comum: o Santa Cruz FC. Íamos aos jogos juntos, mas eu assistia sem a companhia dele. Explico: quem vai a campo desses times de povão sabe das manias de torcedor supersticioso. Nós tínhamos até uma em comum: quando havia na escalação do outro time algum nome escalafobético, tipo “Estaleta”, “Boquinha”, “Cachacinha” etc, tínhamos certeza de que iríamos perder com um gol deles. Era Batata! Outros rezam agarrados com um terço na hora dos escanteios contra. Outros dão as costas para o campo em faltas perigosas. Mas a mania do meu amigo era ir até o degrau mais alto da geral e ficar zanzando de um lado pro outro, o jogo todo, praticamente de um gol a outro, lamuriando algum mantra. Eu não tinha paciência nenhuma para aquilo!

Mas, pensando bem, era melhor ele ficar longe mesmo. Numa das poucas vezes em que se aquietou, final de campeonato, campo lotado, nós dois, que fôramos goleiros na escola, comentamos que o cara tinha deixado o gol muito aberto no lado esquerdo, numa falta do meio da rua. Zagueirão nosso corre meio quilômetro pra bater e Boooomm: bala de canhão voa por cima da barreira e vai lá no ângulo desguarnecido estufando as redes. Gol e campeonato. Estádio vem abaixo e eu junto com o infeliz de 140 quilos pendurado no meu pescoço! Caímos feio. Ele torceu o joelho de ficar inchado. Eu todo arranhado.

Causos verídicos: passamos anos repetindo o pedido em todos os bares, na esperança da mesma réplica e tréplica, mas em vão. Foi assim: chegamos numa barraca no fim do mundo, embaixo de um viaduto. Calor miserável. Sentamos com toda a empáfia e esperamos a mulher gorda vir nos atender com toda aquela má vontade: “senhora, queremos uma cerveja Antártica do casco escuro e estupidamente gelada”. A mulher nos olhou com desprezo e disparou: “olhe, só tem Kaiser, do casco claro e tá meio quente.” Nós dois humilhados, nem um bar num raio de quilômetros, com medo de que a mulher nem servisse mais nada, imploramos em uníssono: “traga duas, pelo amor de Deus!!!” Mas em seguida a mulher amenizou, vendo a nossa falta de noção do lugar, quando perguntamos por tira-gosto: “meu filho, não trabalhamos com isso, mas, se o senhor quiser, eu mando meu filho pegar umas seriguelas lá no quintal”...Aceitamos encarecidamente!

Fundação do GSBB: tradução : “Grupo de Salvamento e Busca ao Bêbado”. Tudo começou na noite anterior. Compramos uma garrafa de uísque para assistir a uma reapresentação de “Quincas Berro D'água”, de Jorge Amado, com o genial Paulo Gracindo. Conto emblemático para os boêmios. A estória na série todos conhecem, Quincas vai a um bar e pede uma cachaça. Servem, de sacanagem, água pura, e o resultado inusitado é que Quincas morre fulminantemente! No filme, parece que os amigos não percebem que Quincas morreu e saem arrastando o defunto pelas farras costumeiras. A cara de felicidade do morto que Gracindo faz é uma obra prima!

Terminado o filme, nossa garrafa já vazia, levantei-me e disse que seria inaceitável ir pra casa e que iria tomar alguma saideira alhures. Meu companheiro levantou-se indignado perguntando se eu pensava em ir sozinho. Resultado: saímos batendo e fechando todos os bares numa segunda-feira à noite, até que o deixei em casa, imprestável, às 3 da manhã. Não sei como, ainda encontrei companhia e bar aberto no caminho pra casa... Cheguei em casa às 10 da manhã. Tinha que trabalhar às 12...

Acordo com a cigarra do apartamento, onde morava só. Abro a porta e está lá o companheiro inseparável perguntando se tudo estava bem. “que horas são”, pergunto, “2 da tarde”, ele responde sorrindo, e completou: “quando vi o carro lá fora, fiquei mais tranquilo”. Ainda me aceitaram no trabalho, mas fiquei mais cuidadoso com os horários depois desse resgate...

Falando em resgates, outros foram necessários, mas parece que o GSBB estava fadado ao fracasso, por falta de cooperação dos bêbados. Quando ainda solteiros e sem filhos, num dos poucos momentos de sanidade em meio às bebedeiras, eu larguei um pressentimento na mesa , entre um copo e outro: “na pisada que vamos, acho que nosso fim não é muito promissor, meu velho”. Choramos. Mas passou. Arranjamos casa, esposas e filhas. Fui morar em outro país. Ele foi para outro estado. Parecia que a vida estava entrando nos eixos e de uma maneira mais sóbria. Ledo engano.

Volto depois de alguns anos e já começaram a me trazer más notícias. Teu amigo vai mal, não consegue parar. Vai perder emprego. Família. Drama. Faço contato. Ele nega tudo. “Exageram”, “Não tem problema nenhum”. Amigos viajam pra conversar com ele e aconselhá-lo. Tentativas de resgate... Nada. Tudo em vão. No final das contas, ele estava indo pelo precipício, de fato, e arrastando todos que o amavam. Foi uma agonia, ainda, de quatro ou cinco anos, mas quando a morte veio, parece ter sido mais um descanso do que uma derrota.

Antes do fim, tivemos ainda dois encontros que nunca imagináramos nem nos piores pesadelos: naquela noite estávamos ali, surrealmente, no mesmo bar, na mesma mesa, mas não estávamos, teoricamente, bebendo juntos! As coisas estavam totalmente fora de controle e eu já havia recusado vários encontros que fossem em bares ou com bebida. Mas naquela noite ele chegou de surpresa. Sentou-se. O garçom trouxe um copo. Ele pediu que eu colocasse a cerveja no copo. Neguei. Ele soltou um risinho amargo, chamou o garçom de volta e pediu uma cerveja só para ele. 

Logo após, começamos uma troca amarga de acusações e de queixas por aquela situação. Por um lado, ele dizia que eu não tinha autoridade moral para reprová-lo. Por outro, eu atirava de volta que ele tinha perdido tudo por causa da merda de uma cachaça. Tento trazer alguma razão de volta, chantageio, falo dos filhos, do futuro, de que ainda tem jeito, de que eu ainda quero ir a um churrasco na casa dele, pra tomar alguns daqueles sucos de tomate com decoração afrescalhada! Nada. Ele continuava, irritantemente, virando um copo atrás do outro. Foi nossa única briga em vinte anos. Antes de sairmos, ainda amenizamos o tom e nos despedimos. Ele provavelmente foi a outro bar, embora tivesse prometido que iria para casa. Perdi as esperanças. Fiquei à espera de um telefonema fatídico.

Um ano depois, recebo um aviso: “se você ainda quer vê-lo, apresse-se”. Ele estava internado há mais de 40 dias. Quadro avançado de cirrose. Convulsões. Toda aquela merda de fim de jogo. Chego tremendo no hall do hospital. Pai chora num canto. Um amigo no outro. Tomo coragem e entro  naquele quarto de hospital. Ele põe a mão para protejer os olhos, não reconhece de primeira. De repente tenta abrir um sorriso. Beijo-o e sento ao lado da cama. Ficamos de mãos dadas um bom tempo. Conversamos sem amargura. Relembramos todas as estórias contadas acima e tantas outras. Demos algumas risadas. Falamos do filhos, do time do coração, das viagens juntos, de uma frágil esperança de futuro. Tudo como nos bons tempos. Ou quase tudo.

Ficamos ali por quase uma hora. Eu com aquela sensação terrível de saudade, de falta de um futuro que não iria haver. Fiquei também com a impressão incômoda de que ele teria feito melhor por mim do que eu fiz por ele, mas já era tarde para remorsos. A conta já estava fechada e, como sempre, com direito a saideira. Antes de ir, fiquei aos pés dele enquanto a enfermeira vinha dar os remédios da noite. Peguei o telefone do quarto para ligar depois, voltar outro dia...Desci e fui fumar um cigarro na lanchonete na frente do hospital. Um misto de tristeza e de saudade.

Dois dias depois: coma. Mais uns dias e estou distante num chalé na serra em Gravatá PE. Recebo o  telefonema inevitável. Ouço o comunicado com uma frieza estranha. Era um fim de tarde na serra. Temperatura agradável. Cigarras cantando forte. Sento-me numa cadeira do terraço. Acendo um cigarro. Um turbilhão de lembranças boas vem surgindo. O fim desatroso quase não aparece, embora alguns “por quês” surjam aqui e acolá. Quando vou ali pela metade do cigarro, ouço aquela voz inconfundível, que ele fazia quando estava manhoso: “poxa, mas nem uma lágrima?” Chorei sem freios.

Dias depois, comentei com minha amiga, comadre e mãe da filha dele: “caramba, fiquei numa sinuca de bico no dia em que ele partiu". "Por quê?" "Não sabia se tomava uma em homenagem ou se ficava no seco em protesto..." "Se nós conhecíamos bem nosso amigo, se você ficasse no seco, ele teria ficado muito chateado com você".  "Então fiz bem em entornar aquele vinho chileno..." "Não tenha dúvida". "Então Amém - eu disse - assim seja". Despedimo-nos.

2 comentários:

Pat disse...

Ah Tio, lembro do dia em que você recebeu a notícia, estava ao seu lado :(
O texto está ótimo: amei!

Daniel Farias disse...

A amizade verdadeira e sincera não tem preço...